Soldados russos enfrentam carências e baixo moral

Comunicações feitas em canal aberto pelos militares russos na Ucrânia mostram desorganização mas também exasperação dos militares. Agências ocidentais acreditam que um soldado atropelou propositadamente o seu comandante.

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Veículos militares russos destruídos na região de Sumy Reuters/Forças Armadas da Ucrânia

A televisão estatal russa mostrou algumas imagens de condecorações de soldados russos que regressaram da Ucrânia, depois de terem sido feridos em combate. Numa, uma fila de soldados em cadeiras recebe as medalhas – quase todos têm apenas uma perna. Noutro caso um soldado deitado é condecorado pelo vice-ministro da Defesa, Iunus-Bek Evkurov. Os vídeos foram partilhados pelo chefe da delegação do Financial Times em Moscovo, Max Seddon, no Twitter, e deixam claro que se a Rússia é o lado mais forte em termos de dimensão e capacidade militar, em termos do moral das tropas está claramente em desvantagem.

A Rússia anunciou na sexta-feira que 1351 soldados russos morreram no que chama a sua “operação especial” na Ucrânia, e que 3825 ficaram feridos – um número visto como mais baixo do que o real (os EUA indicam à volta de 7000 mortos e a Ucrânia ainda mais), mas que mesmo assim representa, em termos de rácio de mortos e feridos, “uma taxa comparável com a da II Guerra Mundial, antes de haver medicina moderna”, comenta o jornalista do Wall Street Journal Yaroslav Trofimov, para quem isto mostra a dificuldade da Rússia usar helicópteros para retirar feridos do campo de batalha e socorrê-los.

O uso de comunicações não encriptadas pelos militares russos – alguns militares, pelo menos, há analistas militares a alertar que as práticas e o equipamento são muito diferentes entre unidade e que este não é um fenómeno generalizado – têm permitido ver alguns problemas. Como o soldado que diz que lhe prometeram que a operação especial iria terminar dentro de horas, e dias depois ainda estava no mesmo local. Ou o que se queixava de não ter apoio aéreo para a sua coluna. Ou ainda o que dizia que a sua unidade teve de andar com cadáveres de outros soldados mortos vários dias, porque não tinha havido meios para os retirar.

As comunicações deixam em aberto um nível de frustração dos militares com as condições, além de problemas já conhecidos como a falta de alimentos em condições e até falta de combustível.

Há ainda um relato de que um comandante militar, Iuri Medvedev, possa ter sido atropelado propositadamente por um tanque conduzido por um soldado furioso com as pesadas baixas que estavam a sofrer (metade dos seus elementos tinham morrido). Fontes de informação ocidentais disseram ao diário britânico The Guardian que havia corroboração do relato feito, antes, por um jornalista ucraniano.

Uma parte do problema para os militares russos é a presença de recrutas, soldados que estão a cumprir o serviço militar obrigatório, nas unidades – pouco experientes e muito jovens, alguns pensavam que estavam apenas num exercício militar.

E se em geral nunca é boa ideia ter recrutas numa guerra, no caso da Rússia o cenário é pior pela prevalência de uma cultura de praxes violentas no exército, um problema que existe há décadas e que as autoridades têm tentado resolver, sem sucesso. Juntando a todas as razões pelas quais não se deve ter recrutas em frentes de combate, há ainda “o facto de estes miúdos [os recrutas] terem sido brutalizados pelos seus superiores”, diz Zoya Sheftalovich, do Politico. “Foram mandados para a Ucrânia com rações de combate fora de prazo, e estão-lhes a pedir que sacrifiquem a vida por pessoas que literalmente os torturaram”. Os relatos desta prática, conhecida como dedovchina, incluem violência extrema como violações e espancamentos durante horas, e tratamentos degradantes.

Há algum debate sobre o impacto da presença dos recrutas e dos efeitos de poderem ser mortos ou feridos na opinião pública russa.

No Politico, Suzanne Freeman, investigadora de estudos de segurança no MIT, e Katherine Kjellström Elgin, do Centro de Avaliação Estratégica e Orçamental, em Washington, lembram que o impacto de mortes de recrutas na sociedade é maior e poderá levar à reacção do público contra a guerra. Os ucranianos têm contribuído para isto usando software de IA para reconhecimento facial, procurando os soldados nas redes sociais, e enviando informação da sua morte a familiares e amigos, para que saibam que morreram em combate na Ucrânia.

Mas outras vozes dizem que as potenciais baixas poderão não ter esse poder. Jade McGlynn, especialista em política externa e de memória da Rússia na Monterey Initiave (Califórnia), nota que muitos russos têm dificuldade em acreditar que os seus familiares em cidades como Kharkiv ou Odessa estão a ser bombardeados por forças russas (já que os media dizem que há apenas uma “operação especial” para salvar os ucranianos), e que até duvidam dos seus próprios filhos que dizem estar em combate na Ucrânia. Outros familiares apoiam a causa, mesmo que os filhos tenham morrido – ou, diz a jornalista russo-americana Julia Ioffe, precisamente por isso, já que a ideia de que perderam a vida por uma causa nobre é mais fácil de aceitar do que se o motivo tiver sido uma guerra de agressão.

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