Migração: dois pesos e duas medidas para responder à “crise dos refugiados”

Esta é uma oportunidade para repensar a dualidade de critérios da UE face aos refugiados da Ucrânia e dos países do Norte de Africa e Médio Oriente.


Assim que o conflito estalou na Ucrânia, a União Europeia foi prontamente, e bem, abrir as suas fronteiras àqueles que fogem de atos de agressão russos. No dia 3 de março, o Conselho da União Europeia concordou por unanimidade com a proposta da Comissão Europeia de ativar a Diretiva de Proteção Temporária (DPT), um mecanismo que nunca tinha sido acionado no passado e que permite a aplicação de um regime de proteção excecional em caso de “afluxo maciço de pessoas deslocadas”. Embora se trate de um passo significativo para a proteção de muitas vidas, é lamentável que o mesmo mecanismo não tenha sido desencadeado noutros contextos, nomeadamente na chamada crise migratória de 2015/2016.

Então, a possível chegada de refugiados, em grande número, justificou a classificação desta vaga migratória como uma “crise” e, por consequência, a adoção de uma política europeia mais restritiva, mas não foi usada pelos líderes da UE para ativar a DPT. A Agenda Europeia para as Migrações de 2015, até agora vista como o documento que reflete a abordagem da UE à “crise migratória” de 2015/2016, referia-se explicitamente a “um grande número de refugiados e requerentes de asilo”. Curioso é agora, em 2022, ver que o número de deslocados vindos do Médio Oriente e Norte de África foi grande para que o contexto fosse considerado uma “crise”, mas não o suficiente para justificar a ativação do mecanismo de proteção temporária. Aliás, a resposta foi mesmo contrária. Decorrente dos conflitos no Médio Oriente e Norte de África, a UE decidiu fechar as suas fronteiras, ao contrário do que faz hoje, e bem, no conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Se assim tivesse sido, teria havido um maior número de chegadas e, certamente, um menor número de mortes no Mediterrâneo, mesmo que a rota para chegar à Europa tivesse permanecido durante mais tempo.

Hoje, muitos desses conflitos continuam a marcar o Médio Oriente e o Norte de África e quem deles foge continua a tentar chegar à Europa, mas os caminhos são cada vez mais longos, mais perigosos e mais incertos devido às políticas restritivas da UE. De acordo com a Organização Internacional das Migrações, estima-se que existam, desde 2014, mais de 23 mil migrantes desaparecidos na dura travessia do Mediterrâneo para chegar à Europa.

Fora da guerra russo-ucraniana, a resposta da UE baseou-se em dois processos restritivos principais: a securitização da migração “irregular” e a externalização do controlo migratório. O controverso acordo UE-Turquia, as condições terríveis dos hotspots italianos e gregos, bem como os regressos à Líbia e à Turquia são exemplos de processos tão restritivos que deixaram muitos migrantes e refugiados sem qualquer apoio. Isto não quer dizer que o humanitarismo tenha estado completamente ausente dos debates e das políticas institucionais de 2015/2016, mas terá, certamente obscurecido o papel da UE, e dos seus Estados-membros, na produção daquilo contra o qual afirmou lutar.

Aliás, a própria cisão entre o humanitarismo (a ideia de oferecer proteção aos que dela “claramente necessitam") e a migração irregular (justificando medidas de externalização e respostas securitizadas) mascaram o facto de não terem sido criadas vias legais simples, em 2015, para aqueles que fogem da guerra e da violência. Deveriam ser mantidos o mais longe possível da Europa e, cá chegados, seriam submetidos a processos de “seleção” e/ou detenção, principalmente em hotspots italianos e gregos. Por outras palavras, as políticas restritivas de externalização e de securitização produziram mais irregularidades, com um impacto inevitável sobre aqueles a quem a “lógica humanitária” prometia proteção.

A falta de vontade política, a nível europeu, em 2015/2016 é hoje cada vez mais notória, sobretudo quando assistimos à rápida e unânime implementação da DPT que permitiu a mais de dois milhões de ucranianos fugirem à guerra e rumarem até à União Europeia. Esta situação deve ser aproveitada como uma oportunidade para repensar a dualidade de critérios da UE em matéria de migração. É altura de uma reflexão nesse sentido e aproveitar que o debate sobre a reforma do Sistema Europeu Comum de Asilo continua em curso.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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