Milhares de crianças “que não fizeram nada de mal” aguardam em campos de refugiados sírios pelo repatriamento

Save the Children diz que, ao ritmo actual, serão necessários 30 anos para repatriar as cerca de 25 mil crianças de mais de 60 nacionalidades que se encontram nos acampamentos de Al-Hol e de Roj, nos territórios controlados por forças curdas.

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Menores nos campos de refugiados de Al-Hol (na imagem) e de Roj vivem em condições “duras e inseguras”, alerta ONG Ali Hashisho/Reuters

Trinta anos. É esta a terrível estimativa feita pela Save the Children, baseada na cadência actual dos processos de repatriamento, para o regresso em segurança aos países de origem de todos os menores de idade estrangeiros que, três anos volvidos da derrota militar do grupo terrorista Daesh na Síria, permanecem, “presos”, nos campos de refugiados de Al-Hol e de Roj, no Nordeste do território.

“Estas crianças não fizeram nada de mal, mas, em vez de serem livres para ser crianças, ir à escola, brincar e viver em segurança, e de terem acesso a um abrigo decente, a cuidados de saúde, a alimentação nutritiva e a água potável, estão presas em condições precárias, a milhares de quilómetros das suas casas, e a correr riscos todos os dias”, alertou na quarta-feira Sonia Khush, directora de Resposta para a Síria da organização não-governamental.

“Em vez de as trazerem para casa, os Governos estão a recusar assumir as suas responsabilidades. Dizem que não têm responsabilidades por estas crianças. Estão a retirar a nacionalidade das suas mães para impedir que regressem, forçando-as a tomar a mais cruel das decisões: ficarem com os seus filhos nos acampamentos ou mandarem-nos para casa para nunca mais os verem”, denunciou.

Segundo a Save the Children, actualmente vivem cerca de 18 mil crianças iraquianas e de 7300 crianças de outras 60 nacionalidades “em condições duras e inseguras” nos campos de refugiados de Al-Hol e de Roj.

Na semana passada, informa a ONG, duas crianças e as respectivas mães foram repatriadas para a Suécia. No mês anterior, 11 crianças regressaram aos Países Baixos e outras quatro voltaram à Suécia. E, em Outubro, outros grupos pequenos de menores foram repatriados para a Alemanha e para a Dinamarca.

Operações sempre bem-vindas, sublinha a Save the Children, mas a ocorrer a um ritmo demasiado lento para as necessidades das crianças refugiadas.

“Estes processos demoram tempo, é certo, mas cada minuto extra é um minuto a mais para crianças que vivem em condições desesperadas. Quanto mais tempo as crianças forem deixadas a sofrer, em Al-Hol e em Roj, mais perigos enfrentam”, lamenta Khush.

“Há crianças presas nestes campos terríveis há pelo menos três anos – algumas há mais tempo”, informa a directora. “Ao ritmo que os Governos estrangeiros estão a operar, veremos algumas crianças chegar à idade adulta antes de poderem sair destes campos e regressar a casa”.

“Vivo na esperança de voltar”

Localizados perto da fronteira com o Iraque, os acampamentos de refugiados de Al-Hol e de Roj encontram-se numa região da Síria controlada por forças curdas e governada de forma autónoma do Governo de Bashar al-Assad.

Na luta contra o Daesh – que, aproveitando o vazio de poder durante a guerra civil, iniciada em 2011, chegou a ocupar grandes porções do território sírio-iraquiano, autoproclamando-se como Estado Islâmico –, os combates naquela região foram liderados pelas milícias curdo-árabes das Forças Democráticas Sírias (SDF) e das Forças de Defesa do Povo (YPG), apoiadas militarmente e financeiramente pelos Estados Unidos e por outros países ocidentais.

A vila de Baghouz, situada a cerca de 400 quilómetros a Sul dos acampamentos, no deserto sírio, foi o último reduto do projecto jihadista antes de este ser derrotado militarmente e forçado à dispersão territorial e à clandestinidade, em Março de 2019. Muitas das populações que viviam nesses territórios residem, agora, em Al-Hol e em Roj.

Desde 2016, em Al-Hol, e de 2015, em Roj, que a Save the Children realiza trabalho educativo, de apoio alimentar e de protecção de menores.

Segundo a ONG, no ano passado morreram 74 crianças em Al-Hol – onde, de acordo com as Nações Unidas, vivem perto de 56 mil pessoas –, incluindo oito que foram assassinadas. Em Fevereiro, informa ainda, um tiroteio resultou na morte de uma criança e no ferimento de outras três; e, já este mês, uma criança e a sua mãe morreram dos ferimentos causados por um incêndio numa secção do acampamento.

Para além disso, foram reportados casos de trabalho infantil envolvendo crianças com menos de 11 anos de idade em pelo menos 55% dos agregados familiares no acampamento de Roj.

Entre os testemunhos de menores recolhidos pela Save the Children, destaca-se o de Idris, um rapaz de 11 anos, natural do Tajiquistão, na Ásia Central. “Sinto que estou aqui preso”, confessa. “Sinto-me deprimido quando penso na minha vida aqui. Vivo na esperança de voltar um dia ao meu país”.

Já Maryam, uma rapariga francesa de 12 anos de idade, está há quatro anos no acampamento de Roj. “Tenho saudades da minha casa, em França. A única coisa que faço é sonhar que um dia voltarei”, conta.

E Hiba, uma menina tunisina de 12 anos, que vive há três, em Al-Hol, com a mãe e os quatro irmãos, admite que “a ideia de ficar aqui durante anos” a deixa “louca”. “Às vezes chora”, para aliviar a tristeza que sente. E lança um apelo para casa: “Desejo poder gritar e que me oiçam em Tunes”.

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