Ilhas de culpa e borboletas que se libertam

Todas as obsessões são ilhas de pecado; quando o pecado morre, abrem oficinas de catarse. Nem sempre é preciso desertar.

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"Arranjo Floral", de Filipe Pereira Alípio Padilha

“Vocês sabem o que é o Grindr?”

A pergunta veio de um sósia de Cristo. Filipe Pereira, coreógrafo e bailarino de Fátima, já apresentara a palestra-performance Arranjo Floral em palcos mais a Norte, com a distância do relativo anonimato. Nunca em Ourém, o seu próprio concelho, historicamente laranja — e não foram as poeiras do Sara — e em eterna dívida a três pastorinhos.

A pergunta não veio com malícia. Por Ourém, a vida queer é daquelas coisas invisíveis, polémica de café ou erro ortográfico, mas, mesmo em adágio, aportam na cidade novos tempos. Hossanas ao Teatro Municipal de Ourém por programar a provocação, de Jonas&Lander a Teatro Praga. Força para o desafio que se agiganta: saber como comunicar tudo isto. Na ausência de glossário, Filipe esclareceu: por Grindr, entenda-se app que facilita o fornicanço entre homens.

Homens são homens — epifania de uma troca de fotos, em que, de súbito, reconheceu o interlocutor. “Sôr padre!”, respondeu-lhe; dita a piada, breves os risos na plateia. Filipe parou as mãos e o alicate, as estrelícias e os cravos, com que cumpria o título desta autobiografia. Parecia ainda estar a deglutir o fantasma: o futuro que poderia ter sido o seu. Não pelo sacerdócio, dada a vocação caduca (como Carlos em Manhã Submersa, felizmente sem foguetes à mistura), mas também para ele a igreja significava amparo, quando a sexualidade já anunciava a penitência.

Deixar-se ficar, apeado, do outro lado da liberdade — uma história usurpada, embora não uma projecção fútil. A vida queer tem muito de trauma herdado; acrescentem-lhe uma matriz judaico-cristã e será como Mentos em Coca-Cola. Outra peça em digressão, Maráia Quéri, de Romeu Costa e Raquel S., desdobra igualmente o palco em confessionário. Na escarpa entre pecar e viver, dois actos de dramaturgia em relação intertextual-não-intencional.

Amontoando blocos de memória, Filipe Pereira faz da vergonha letra morta. A vergonha em Maráia Quéri (que teve residência esgotada no Teatro Nacional D. Maria II), contudo, é um processo em curso. Romeu Costa, actor e comunicador de ciência, também usa uma palestra-performance para se contar a si próprio… Quer dizer, lá chegaremos.

“Nós somos o Romeu”, diz, apresentando uma pesquisa sobre o gosto musical heterodefinido (prefixo maroto). Que vozes e discos escutamos em segredo? Céline Dion, Whitney Houston e outras divas açambarcam o círculo dos guilty pleasures, ou, como legenda o ecrã, “guilti pléjares”. Prazer culpado ou culposo, que culpa é essa? Tudo o que não obedece ao patriarcado ocidental, crivo do homem branco e/ou católico, sempre foi escalpelizado e punido.

Romeu, investigador, encolhe-se. Um giz repentino golpeia o chão: “Eu sou uma pessoa horrível”. Depois, aparece Ela, invocada pelos subterfúgios da extensão vocal e do melisma… Balelas! Um playback lapidar de Hero, com a devida gesticulação, tira a teima. Romeu, o fã, explode — e a culpa, sua tão grande culpa, por um gosto que carece de legitimidade. Foi Butterfly (1997) o disco que o guiou pelo primeiro amor; descobrindo-se homossexual, foi Mariah quem lhe deu a mão, para sair da terra natal.

Para Romeu, era Aveiro. Para Filipe, Fátima: o “descampado” onde se arvorou um centro comercial de santinhas (gratidão por nos mostrar o letreiro da loja GlamourosAparição). Quando os colegas de escola o brindavam com homofobia “inocente”, contra-atacava com tapetes intrincados para Nossa Senhora. Com ele, a paróquia de Lombo d’Égua fez-se flor, verbo divino que Filipe, hoje ateu, continua a conjugar.

Naquela noite de Março, em Ourém, Arranjo Floral fez parelha com outra palestra-performance: Nisto, de Pedro Penim. Usava a islomania como narrativa: a obsessão fulminante com ilhas, pedaços de terra que circunscrevem o ilhéu — mesmo que só por Google Earth. Música cantada por quem nunca nos vai abraçar. Terras e plantas que reconciliam desobediência com devoção.

Todas as obsessões são ilhas de pecado; quando o pecado morre, abrem oficinas de catarse. Nem sempre é preciso desertar.

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