Cidadãos da Europa, uni-vos!

Os quatro maiores grupos políticos europeus concordaram na criação de 28 lugares parlamentares a serem ocupados por eleitos numa lista paneuropeia já na próxima eleição de 2024.

A existência de uma assembleia representativa dos interesses dos cidadãos, em que os seus deputados são eleitos democraticamente, é um traço identitário do projeto europeu, que lhe confere um estatuto histórico entre todas as organizações internacionais de Estados que a humanidade já conheceu, galgando as fronteiras características de cooperação económica de qualquer organização internacional ou bloco de cooperação regional, para se destacar como comunidade política de cidadãos que, apesar de salvaguardar a sua multiculturalidade e diferença, reconhece a partilha de valores, de interesses e de percurso histórico comuns.

De 1992 para cá, com o Tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia como hoje a conhecemos, e apesar de algumas reformas de base no quadro institucional europeu, bem como tentativas goradas de maior aprofundamento da União (com o claro exemplo do projeto de Constituição europeia), a União Europeia tem cambaleado no meio da ponte, tendo dificuldades, ela própria, em caracterizar-se.

Esta questão tem vindo a ser levantada - e foi particularmente tratada durante a crise das dívidas soberanas - com a generalidade dos cidadãos a compreenderem o impacto e o efeito direto que a atuação (ou omissão) das instituições europeias podem ter nas suas vidas quotidianas. Abruptamente, a União Europeia deixou de ser aquele “objeto político não identificado”, como a caracterizava Jacques Delors, transcendente e longínquo, para ser o que tinha o poder de mitigar os efeitos da crise económica e social e definir o caminho de como o fazer. Muitos compreenderam as falhas do quadro institucional e ergueram a sua voz para criticar a anemia do Parlamento Europeu (única instituição com legitimidade democrática direta) perante o poder da Comissão Europeia ou do Conselho. Vários académicos voltaram a defender um reforço do poder do Parlamento e a sua consagração como instituição central no quadro político europeu, devendo ser reformada a sua representatividade e os poderes conferidos pelos Tratados à Instituição.

É seguro afirmar que, em momentos de crise, a importância da União Europeia revela-se. Assim foi, também, na resposta à pandemia e, agora, na reação consensual contra o ato de guerra de Putin. Sempre que acontece, surge nos europeus a vontade de aprofundar o seu projeto comum e, por força disso, os instrumentos que o cidadão tem para influenciar direta ou indiretamente as decisões supranacionais. E a análise do estado da arte tem inevitavelmente de demonstrar uma instituição a meio da ponte, secundarizada perante o poder executivo da Comissão e dos interesses dos Estados-membros representados pelo Conselho. Não é sério afirmar que os cidadãos europeus têm, ao dia de hoje, os mecanismos suficientes para influenciar direta ou indiretamente (através dos seus eleitos nacionais para o Parlamento Europeu) o futuro da Europa e as medidas tomadas pela UE que, como se disse, influenciam em grande medida o seu próprio bem-estar. A título de exemplo, basta recordar que o Parlamento continua a não ter um direito geral de iniciativa legislativa, sendo-lhe apenas conferido um direito de iniciativa legislativa indireta, podendo solicitar à Comissão que apresente uma proposta legislativa, que esta Instituição pode ou não fazer, qual “Direito de petição ao Rei” encontrado nas assembleias ou cortes medievais europeias. O atraso da evolução do Parlamento Europeu em relação à tradição parlamentar dos Estados-membros que constituem a UE é notório e inevitavelmente sufoca a legitimidade democrática de toda a União.

No entanto, no passado dia 10, surgiu uma nova onda de esperança na mudança do paradigma descrito e na consagração de um novo passo no caminho de fundação de uma assembleia europeia representativa dos interesses dos cidadãos europeus enquanto tais. Os quatro maiores grupos políticos europeus (PPE, S&D, Renovar a Europa e Verdes/AliançaLivre Europeia) concordaram na criação de 28 lugares parlamentares a serem ocupados por eleitos numa lista paneuropeia já na próxima eleição europeia de 2024. Assim, caso esta medida seja efetivamente consagrada, daqui a dois anos, todos os cidadãos dos Estados-membros serão chamados a votar enquanto nacionais (elegendo, como tradicionalmente, os seus deputados europeus no seu círculo nacional) e enquanto europeus (optando por uma das listas constituída por candidatos de toda a Europa).

Esta é a mudança de rumo que de precisávamos. É um passo para que as eleições europeias passem a ser encaradas com a importância que merecem, com a cobertura transnacional e com o investimento político de todos os agentes políticos em todos os Estados-membros, sem exceção.

As dores de crescimento deste “objeto político não identificado” têm sido complexas, mas os desafios que este século tem criado têm uma constante: uma Europa que se sabe reformar e vizinhos europeus que, cada vez mais, se encaram como cidadãos de pleno direito neste projeto político comum.

Uma Europa unida, em que a democracia varre o ceticismo e contribui para a construção plena do indivíduo enquanto cidadão europeu, detentor de uma esfera de direitos e deveres enquanto tal, é possível! E aqui está a prova.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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