Os russos também amam os seus filhos?

Uma forma de ganhar a paz talvez passe pela competição pacífica, ou seja, reconhecer a Rússia (como reconhecem alguns analistas ocidentais) como líder de um bloco concorrente.


Cooper (Matthew McConaughey) encontra-se perdido no tempo à procura do presente certo da filha, não para mudar o passado, mas para ensinar o futuro. A ficção de Christopher Nolan e a física de Kip Thorne (Interstellar, 2014) sabem que o passado não se repete, por isso, quando consegue comunicar com a jovem Murph (Macenzie Foy), Cooper já está a comunicar com Murph na sua idade adulta (Jessica Chastain), isto é, a filha está no seu presente e o pai continua no seu futuro.

Se a ficção científica não se repete, porque insistimos na distorção de que a história é uma Bimby onde tudo volta a acontecer?

A invasão da Ucrânia repete a ocupação dos Sudetas consentida pelas democracias europeias? Se quisermos evitar comparações espúrias em tributo à Grande Guerra Patriótica, talvez se possa invocar com maior propriedade ficcional a invasão da Finlândia para garantir Leninegrado e a anexação da Bucovina do Norte e de partes da Bessarábia no processo de sovietização da Bieolorrúsia e da Moldávia.

O Ocidente pode insistir em classificar Putin como uma síntese entre nacionalistas fanáticos e nostálgicos soviéticos, ou tudo junto para maior elasticidade retórica, mas a militância ardente dos irritados de nada serve para explicar o despertar do urso.

A Rússia tem vivido entre a humilhação da implosão da União Soviética, a disfuncionalidade do capitalismo oligarca de Estado e um certo receio de que o Ocidente pretende provocar uma mudança em Moscovo. Esta dinâmica explica as sucessivas intervenções russas no delicado Quirguistão (demasiado longe de Moscovo e demasiado próximo do mundo muçulmano), a tomada de territórios na Geórgia para defender o Cáucaso, a anexação da Crimeia para recuperar o acesso histórico ao Mediterrâneo e uma evidente pressão sobre a Moldávia (através da Transnístria) para empurrar a fronteira de uma Roménia que Tony Judt (Reflections on the Forgotten Twentieth Century) recorda ter colaborado activamente com os nazis na invasão da União Soviética e permitido o pogrom em Iasi, em Junho de 1941.

Alguma coisa poderá ainda acontecer no acesso ao Atlântico Norte se a Dinamarca integrar o sistema antimísseis da NATO e a Suécia ignorar a memória de uma guerra que começou a perder na política expansionista de Catarina, A Grande. Putin já simulou a anexação de Gotland e um dia poderá cair na tentação de reconfigurar o golfo da Finlândia (onde o czar de todas as Rússias combateu os suecos com apoio dos dinamarqueses).

O coração da mãe-rússia (a Rússia está onde estão os falantes de russo) encontra-se algures entre a memória do Dniepre no combate dos cossacos e dos russos contra polacos e lituanos para criarem a Ucrânia e a força heróica do Volga na resistência a Genghis Kahn.

Os eslavos estão nas estepes da Moscóvia, proclamada capital do império por Ivan III no século XV, o czar de todas as Rússias. Estão nas planícies glaciares da Bielorússia, a Rússia Branca, colonizada por eslavos orientais desde o século V, por onde também entraram (já derrotados) Napoleão e Hitler. Os povos eslavos estão na Ucrânia, a Pequena Rússia, em cuja capital (Kiev, a mãe de todas as cidades russas) os povos eslavos confederaram (ao longo do Dniepre) o primeiro Estado russo no século IX: o Kieven Rus (que haveria de ser destruído pelos mongóis). O Império Russo de Pedro e Catarina foi desde a sua fundação, no século XVIII, um império em expansão.

É uma atitude que Hannah Arendt (The Origins of Totalitarianism) fundamenta no imperialismo continental, tendo por base uma concepção arbitrária do poder. Uma revisitação do pan-eslavismo russo inspirado por um só homem e assente numa motivação poderosa: o regresso da ideia (sentimental) do czarismo como expressão anti-ocidental e antidemocrática.

Esta Pátria-russa legitima-se por oposição ao Ocidente e Putin e os seus boiardos hão-de querer negociar o futuro da Rússia Branca em cima dos escombros da Ucrânia.

É também por isso uma dinâmica de desapropriações que Edward Said (No Reconciliation Allowed) testemunhou quando ouviu a primeira-ministra israelita Golda Meir afirmar que não existem palestinianos: o desvínculo que resulta da não-história e da não-existência.

Recomecemos agora por aqui: o que representam a NATO e a União Europeia (UE) na perspectiva dos russos?

Quando Ronald Reagan colocou em evidência a falência do modelo soviético, o mundo comemorou o desaparecimento da pátria do bolchevismo e a vitória do capitalismo democrático, não por via do confronto, mas da détente. É esse paradoxo que Eric Hobsbawm (The Age of Extremes: The Short Twentieth Century) dramatiza: foi a interaccção da economia soviética com o capitalismo que cavou a sepultura.

A Rússia deixou de contar e ficou a viver na humilhação da derrota, mas não só deixou de contar, como viu o Ocidente ultrapassar a fronteira exterior imaginada por Estaline. As revoluções coloridas entusiasmaram o Ocidente (Revolução Laranja na Ucrânia, em 2004; e a Revolução Rosa na Geórgia, em 2008, a lendária Cólquida dos Argonautas), mas os russos interpretaram os processos como infiltrações desestabilizadoras. O poço ficou envenenado.

Quando Nikita Krushtchov tentou colocar mísseis nucleares em Cuba para intimidar os Estados Unidos, lembrou-se de uma provocação psicológica: “Why not throw a hedgehog at Uncle Sam’s pants?” John Lewis Gaddis (The Cold War – A New History) cedo chamou a atenção para os riscos de empolgamento das potências militares quando a tensão é alta e as apostas ainda maiores.

A nova doutrina militar da Rússia define claramente como riscos externos a expansão do bloco ocidental, e a UE pode representar um avanço para as democracias complexas, ou seja, as poliarquias que Daniel Innerarity (Una Teoría de la Democracia Compleja) antecipa como o futuro da construção europeia, mas os russos estarão genuinamente interessados em sistemas económico-financeiros interligados e em partilhas de soberania sem centros hierárquicos de poder?

A Rússia está à procura de uma nova ordem que corresponda ao seu modelo de soberania. Uma forma de ganhar a paz talvez passe pela competição pacífica, ou seja, reconhecer a Rússia (como reconhecem alguns analistas ocidentais) como líder de um bloco concorrente. Tratar-se-ia de uma nova relação funcional baseada no direito da Rússia construir o seu próprio processo de integração, mas nem essa questão seria fácil, porque importa considerar aquilo que os outros realmente querem: as democracias euro-americanas ou as autocracias eslavas?

São cerca de 13 minutos (mais coisa menos coisa) para Nolan e Thorne dramatizarem a relativização do tempo e do espaço, mas são 13 minutos que preservam uma ideia generosa: mesmo quando encontramos o tempo certo para interagir com o passado, nunca o conseguimos alterar.

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