Escolhas

Enquanto não tenho alternativa, escolho sem reservas a dominação de matriz norte-americana.

Antes de #MeToo significar o que significa hoje tinha outra conotação. “Me Too” é uma expressão norte-americana que também designa seguidista, alguém que faz porque outros fizeram. Estando implícito que, independentemente de convicções, havia ali oportunismo, vontade de palco e ânsia de pertencer; o outro lado da, igualmente desagradável, ânsia de contrariar. Em ciência esse “Me Too” dá imenso jeito, porque implica que se repetem as mesmas experiências, reforçando a segurança das conclusões. Só que a sociedade é uma experiência única e fluida.

Tudo já foi dito sobre a Guerra na Ucrânia, estamos imersos em ruído, análises geopolíticas e, infelizmente, catástrofes humanitárias e consequências económicas. Isto enquanto outras tragédias mundiais quase desaparecem (incluindo a covid-19) ou nunca existiram. Não é uma acusação de hipocrisia, apenas uma constatação; a História sempre foi múltipla e seletiva. Não restando muito de original a dizer, diferentes analistas aguardam que o futuro lhes dê razão. Ou, se tal não acontecer, justificarem com a fluidez do contexto, e terem razão na mesma. Se há coisa inédita é algum analista (seja quem for) admitir que se enganou.

A minha declaração de princípios é simples. Nunca tive qualquer fascínio ou simpatia por Vladimir Putin (ou pelos diferentes autocratas seus antecessores). A frase-resumo, dita de várias maneiras, que é “um pobre coitado/estratega brilhante/guardião da alma eslava (riscar o que não interessa) que foi provocado e não tinha outra hipótese” está errada no início e no fim. Pode não o estar no meio, mas é irrelevante.

Do mesmo modo, tendo afinidade com todos os povos, não tinha grande admiração pelo regime ucraniano (este ou o anterior) antes do conflito, como não tenho por outros regimes europeus onde noto algumas tendências de governação semelhantes (Polónia, Hungria, Turquia), o que nada tem que ver com o desígnio inalienável de soberania. Mas é o miúdo da nossa turma (mesmo que até agora mal tenhamos dado por isso) que está a levar pancada de um bully muito maior no recreio; neste momento como não lutar por ele, sem reservas? Depois falaremos.

O Presidente (e general) dos EUA Dwight D. Eisenhower (não um idealista radical de esquerda) denunciou há muito (em 1961) o “Complexo Militar-Industrial” norte-americano, que queria promover guerras para ter lucro, seja em que contexto for (NATO, outros consórcios, isoladamente). Claro que o alerta de Eisenhower foi feito no seu discurso de despedida, algo que é comum a vários políticos cuja franqueza desperta com a reforma. Podemos acrescentar a este o “Complexo Digital-Global” (Apple, Meta, Alphabet/Google), que responde mais a acionistas, já não tanto a governos (eleitos ou não). Mesmo que possam estar “certos”, nem sempre estarão, e não sei qual dos dois é mais assustador, o sarcasmo brutal e o cinismo insidioso são diferentes facetas orwellianas.

Há ainda uma distinção importante: não estão do nosso lado, nós é que nos temos de por do lado deles. Porque, por entre toda a complexidade, há sempre uma escolha linear a fazer, quando a neutralidade é impossível. Algo que não pode significar unanimismos acríticos ou diabolizações rumo a uma falsa sensação de superioridade moral. Decretando o isolamento sanitário a quem não jurar fidelidade suficientemente “bem”, e engolindo de passagem tudo, incluindo inverdades (mesmo que “úteis”) que surgem em todas as guerras. Ou, para usar outra expressão norte-americana, derivada do massacre de Jonestown (1978), “Drinking the Kool-Aid”.

Gostava de ter uma Europa política e económica a sério. Não tenho (tenho o cultural e social, o que já é ótimo), espero que possamos agora ir a tempo. Haverá outras vivências alternativas (aprecio particularmente o conceito africano de Ubuntu, essencial em abordagens de “One Health”), mas nelas serei sempre um turista. Por isso, e enquanto não tenho alternativa, escolho sem reservas a dominação de matriz norte-americana. Até mesmo se Trump (ou um seu clone) voltar, o que não é improvável. Chamem-lhe outra coisa mais reconfortante e heroica se preferirem, pessoalmente não tenho ilusões. Tem problemas, mas não comparáveis aos universos de Putin, Xi Jinping, ou Mohammed bin Salman, nos quais dificilmente poderia expressar estas opiniões. Por isso estou muito grato, que não satisfeito; são coisas distintas. Preferia não ter de escolher, mas a ingenuidade não dá para tudo, e também dispenso os comprimidos entorpecedores azuis da metáfora perfeita aqui, que é o filme The Matrix.

De resto, as opiniões que tenho e terei resultam dessa escolha, que há muito está feita, e nada tem a ver com a atual situação. Até achar ter outra opção válida sobram análises complexas que leio com muito interesse, ou ruído igualmente complexo que tento entender, mas que não me desviam do fundamental.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 1 comentários