Quantos anos tem um velho?

São os sonhos, não os anos, que devem ditar o momento certo para as realizações. Se seguirmos cegamente o chavão “já não tenho idade para isso”, o mundo à nossa volta não será mais do que uma história contada duas vezes, sem incertezas ou descobertas. Que monotonia.

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Eric Masur/Unsplash

– Viste aquele senhor de idade que joga ténis e que não quer sair de Kiev? — diz-me a minha mãe, radiante.
– Senhor de idade? Quanta idade? — replico.
– Não sei, é mesmo velhote, tem uns noventa e tal. É o jogador de ténis mais velho do mundo. Até já jogou com aquele espanhol que ganha tudo, aquele forte e bonito, não me lembro agora o nome.
– O Nadal.
– Isso mesmo!
– Onde é que viste isso?
– Na televisão.

Encontro a notícia aqui mesmo, no PÚBLICO, com data de 16 de Julho de 2021: “O jogador de ténis mais velho do mundo é da Ucrânia, tem 97 anos e ainda joga — Leonid Stanislavskyi diz que o segredo da sua longevidade é uma mistura de bons genes e fazer desporto de forma regular.” Fascinante. Leio o artigo até ao fim e descubro que Stanislavskyi tem como objetivo “viver até aos 100 anos de idade e enfrentar o suíço Roger Federer” e que “sonha saltar de pára-quedas”. Por estes dias, por causa da guerra, está fechado na sua casa em Kiev, onde foi entrevistado por um canal de televisão: “Espero sobreviver a esta situação assustadora e viver até aos 100 anos.”

Vejo e revejo as suas declarações, encantado com a certeza com que fala dos seus objectivos e dos seus sonhos. 97 anos. “Um senhor de idade”, como disse a minha mãe. Como dizemos todos para nos referirmos a quem já ultrapassou determinada idade. Mas que idade ao certo? Ocorrem-me inúmeras expressões sobre idade, expressões que todos já ouvimos, que já utilizámos ou, no mínimo, pensámos: “A idade é só um número”, “fulano está na flor da idade”, “já não tenho idade para isso”, “esses problemas são comuns na idade avançada”, “com a idade isso passa”.

Mas o que é a idade? Procuro a resposta à antiga, folheando (fará isso de mim um senhor de idade…) o terceiro volume (F-L) do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados de José Pedro Machado (Livros Horizonte, 3.ª edição, 1977).

Idade, s. do lat. aetâte-, o tempo de vida, vida; época da vida, idade; mocidade, velhice; tempo; época, século, geração.

“É curto”, sussurro para mim, enquanto saco da prateleira o tomo I (A-L) do Dicionário Enciclopédico de Língua Portuguesa (Alfa, 1992).

Idade: O tempo em que vivemos; Geração; Era, época histórica; Cada um dos períodos em que se costuma dividir a vida do homem; Tempo; Duração ordinária da vida; Por extensão, a vida; O número de anos de uma pessoa desde o seu nascimento até à época de que se fala; Momento próprio para.

Ora cá está: “Momento próprio para.” Próprio para quê? Leonid Stanislavskyi tem 97 anos, o que faz dele, segundo a lógica sob a qual vivemos, um senhor de idade. Ora, Stanislavskyi joga ténis e sonha saltar de para-quedas. Quem arrisca dizer que “já não tem idade para isso” ou que “com a idade isso passa-lhe”? “A idade é só um número” é a expressão que melhor encaixa na história de longevidade do senhor Stanislavskyi. Mas há outras igualmente adequadas, como “O homem começa a morrer na idade em que perde o entusiasmo” (Honoré de Balzac) ou “Cada um tem a idade do seu coração, da sua experiência, da sua fé” (George Sand).

“És um lírico”, acusa-me um amigo com quem partilho a divagação. “A velhice é velhice, não há mais por onde ir, e é uma limitação, por isso é que existe a geriatria”, acrescenta, em remate de conversa, plenamente convicto da força da sua argumentação. Retenho a ideia e pesquiso o termo geriatria em busca de mais algum sentido, para além do óbvio, no Dicionário de Termos Técnicos de Medicina, editado em 1984 pela Organização Andrei Editora (sim, coleciono-os…).

Geriatria, s.f. velhice; tratamento; Ramo da medicina que se ocupa das doenças dos velhos.

Não me convence. Formulo mais uma pergunta: a partir de que idade se é velho e se começa a marcar consultas de geriatria para lidar com as doenças de velho?

Nova pesquisa em busca de respostas, desta vez na internet, mais concretamente no site da Organização Mundial de Saúde (OMS), onde apuro que, para esta entidade, idoso (o Dicionário Enciclopédico de Língua Portuguesa diz que é aquele que tem bastante idade; velho) é todo o indivíduo com 60 anos ou mais. Confirmo a informação noutros sites médicos de boa reputação. Alguns aconselham até que as consultas de geriatria sejam iniciadas aos 60 anos ou até antes, aos 40 ou 50, para quem desejar envelhecer com saúde e qualidade de vida.

Concluo que estou atrasado sete anos na marcação da consulta geriátrica e pergunto-me se Leonid Stanislavskyi, nos 37 anos que leva de idoso, já terá ido a alguma consulta de geriatria? Duvido. Num tolo exercício de imaginação, vejo-o a entrar no posto médico de uma qualquer freguesia de Kiev e a cumprimentar com um sorriso irónico o médico geriatra enquanto entra no consultório do fisiatra do desporto.

– De que se queixa, senhor Stanislavskyi?
– Ó doutor, é aqui esta moinha no cotovelo… Tira-me a potência da esquerda a duas mãos — lamenta-se Leonid.
– É quase certo que seja uma epicondilite lateral de cotovelo, senhor Stanislavskyi, cotovelo de tenista…. Isso passa com descanso e gelo — responde o fisiatra.
– Descanso? Mas não posso jogar?
– Ora essa, claro que pode, homem! Não bata é com tanta força.
– Ah, bom! É que para a semana jogo contra o Federer!

Uma partilha final: durante uma viagem de avião, conheci um casal de testemunhas de Jeová, o Lowell, de 85 anos e a Margot, com 83. A empatia foi grande e acabei por manter uma troca de e-mails com o Lowell durante mais de dois anos. Falávamos sobretudo sobre o sentido da vida e, no final de cada e-mail, deixávamos sempre algumas perguntas sobre a existência do homem, necessidades, aspirações e futuro.

O que mais me fascinava no Lowell é que falava como se tivesse 20 anos e a vida toda pela frente. Queria publicar mais livros, fazer mais viagens, tinha planos para realizar dezenas de obras de beneficência…

Depois de conhecer o Lowell, bem como a sua história e percurso de vida, percebi que a idade não é limitação para nada, muito menos para sonhar. Antes de o conhecer, achava isso incrível para alguém com 85 anos. Hoje, acho que é apenas a única coisa lógica a fazer: sonhar sempre, sonhar até ao último suspiro. “Lowell, que sonhos tens ainda por realizar?”, perguntei-lhe num e-mail ao qual nunca recebi resposta. Ao fim de alguns meses de espera, aceitei que a nossa conversa entrara num período de pausa sem data estipulada para reatar. Mas imagino que a sua resposta seria mais de uma dezena de linhas de exposição de todos os seus projetos e sonhos, em que lamentaria apenas quão curta é a vida para tudo quanto há para fazer.

Fica a lição dos Lowell e Stanislavskyi desta vida. São os sonhos, não os anos, que devem ditar o momento certo para as realizações. Se seguirmos cegamente o chavão “já não tenho idade para isso”, o mundo à nossa volta não será mais do que uma história contada duas vezes, sem incertezas ou descobertas. Que monotonia.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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