O coração da Europa bate em Kiev

A guerra na Ucrânia nasceu “por causa da política de desarmamento que a Europa seguiu alegremente ao longo de três décadas”. Especialista em defesa e relações internacionais, o historiador António Telo sublinha que a Ucrânia é hoje “a marca mais avançada do Ocidente e dos seus valores democráticos”.

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Soldado ucraniano recém-treinado recebe a bênção de um padre antes de partir para a linha da frente THOMAS PETER/Reuters

O sonho...

A Ucrânia deu muitas lições à Europa e ao Ocidente.

Provou que ainda há povos dispostos a lutar e a morrer pela liberdade e independência, coisa que custava a acreditar na Europa acomodada, dividida, descrente e cínica do século XXI. Provou que a defesa, a segurança e a dissuasão dependem de ter força efetiva, quando a Europa desarmada parecia pensar que tal dependia dos manuais de Direito, das condenações aprovadas em câmaras e das sentenças de tribunais, que de nada valem se não houver força para as aplicar. Provou que ainda há políticos dispostos a lutar e morrer pelo seu povo e pelos valores essenciais, numa Europa que via no essencial os políticos como modelos de um desfile de alta moda, sempre com fatos que custam dez salários mínimos, produtores de ar quente e de tiradas politicamente corretas, inspiradas pelas ideologias do passado e longe dos problemas do presente. Provou que ainda há um espaço para os heróis e para o sonho, dando razão a Fernando Pessoa, quando escrevia “sem sonho, o que é o homem, mais que cadáver adiado que procria?”.

Por isso, pela sua liderança pelo exemplo, pelo sacrifício, pela forma como nos despertou a todos, a Ucrânia é hoje a marca mais avançada do Ocidente e dos seus valores democráticos, a sua fronteira e a sua primeira linha de defesa, que luta e morre por nós.

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Soldados ucranianos na linha da frente nos arredores de Kiev GLEB GARANICH/Reuters

A Ucrânia pediu para ser aceite pela União Europeia, que, como seria de esperar, tratou o assunto de forma burocrática e não política, como mais um caso, consultando os seus manuais e avançando com os “longos anos” do processo e os outros candidatos... Não se entendeu, não se soube entender, que era um caso único, um povo heroico que se sacrifica, que faz o que não temos coragem de fazer, que precisa de uma resposta política que o faça entender que sabemos que luta por nós.

Na realidade, em termos da Europa do futuro, da Europa que vai nascer a partir deste imenso pântano burocratizado para onde a Bruxelas de hoje mandou o que em tempos foi o grande sonho europeu, não é a Ucrânia que devia aderir à União Europeia; é a União Europeia que devia aderir à Ucrânia!

Esta é a grande lição desta crise para a Europa, mas os políticos dominantes em Bruxelas jamais a vão entender, porque isso não faz parte da sua maneira de pensar. Possivelmente, a maioria dos europeus ainda não está preparada para entender esta lição básica. Esperemos que quando o entender — o que irá acontecer — não seja demasiado tarde.

Em larga medida, toda esta crise nasceu por causa da política de desarmamento que a Europa seguiu alegremente ao longo de três décadas, política que a fez perder a capacidade de dissuasão, a única que podia ter evitado esta agressão brutal. Com o pretexto de defender a paz, por exemplo, a Alemanha, a maior economia europeia, passou de 3826 carros de combate (em 1991) para 323 (em 2021); a França de 2270 para 222; a pequena Bélgica de 396 para 0 (zero!). É só um exemplo. Se examinássemos qualquer outra das capacidades importante para a defesa, o resultado seria o mesmo.

Infelizmente, hoje em dia continua a ser válida a velha regra, que os europeus conheciam no passado: a força permite a dissuasão; a fraqueza origina a agressão.

… e a realidade

Quem escreve isto, antes da guerra, em múltiplos escritos, criticou a Europa por fazer o contrário do que o Presidente Theodore Roosevelt aconselhava no século XIX. O Presidente americano recomendava que se falasse suave e se tivesse um cacete atrás das costas. A Europa de Bruxelas fez o contrário: falou forte e só tinha ar quente atrás das costas. Era um convite para a agressão a um poder como a Rússia, que desde há muito só entende a razão da força. A Europa está refém das banalidades ideológicas. A Rússia pensa que os governos existem para defender os interesses nacionais.

Em vários escritos indiquei, antes da guerra, que era importante encontrar um terreno sólido para uma colaboração de longo prazo com a Rússia, porque isso era a única forma de trazer para a força da razão o que era potencialmente o principal aliado da China, sendo certa que esta caminha para ser a primeira economia mundial dentro de poucos anos. Caso contrário, a Europa mandaria a Rússia para os braços da China, numa posição de dependência, e podia criar um novo mundo bipolarizado.

Mas isto era antes da agressão brutal, antes de a Rússia de Vladimir Putin ter feito a opção errada, ter provado que acreditava que o Ocidente estava demasiado dividido e enfraquecido para dar uma resposta adequada aos mongóis do século XXI. Provavelmente enganou-se, mais ainda é cedo para o garantir.

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Praça Maidan, Kiev ZURAB KURTSIKIDZE/Reuters

Esta crise surge na pior altura possível do ponto de vista da humanidade como um todo. Surge numa altura em que a humanidade se devia concentrar no seu problema central: o combate à grande crise ecológica que ameaça destruir o equilíbrio que mantém a vida no planeta Terra. Em vez disso, a crise ameaça empurrar-nos para uma nova Guerra Fria, com a China e a Rússia de um lado e a Europa e os EUA do outro. Será bom recordar que, na lógica da Guerra Fria, a dissuasão só funcionava porque o tempo jogava a favor do Ocidente, que aumentava o seu peso relativo. Caso o tempo não jogue a favor do Ocidente, o confronto bipolar tende a terminar, não com uma implosão, mas com uma guerra geral, em que todos perdem.

É também por isto que a extraordinária resistência do povo ucraniano é importante. Ela é a única possibilidade de manter a força da razão na humanidade. Se a Rússia de Putin vencer por completo, se ela for capaz de dobrar e vergar o heroico povo ucraniano, então estamos claramente a caminho de uma nova Guerra Fria num mundo bipolarizado. Com a importante diferença de que, desta vez, não é certo que o tempo jogue a favor do Ocidente.

Se, pelo contrário, o Ocidente jogar bem nesta crise, então o resultado pode ser diferente. Se a agressão russa se saldar, não por uma vitória completa, mas por uma saída que mantenha as aparências, então ainda há esperança de que a força da razão vença. Será bom não esquecer duas coisas: no médio prazo, o potencial rival do Ocidente é a China, enquanto a Rússia não passa de um aliado menor, com um arsenal nuclear maior; só a China tem autoridade para fazer a Rússia recuar.

A Ucrânia está no centro deste dilema. Mas o que está realmente em jogo, não é só a Ucrânia. É o futuro do Ocidente e mesmo da humanidade, esquecida de momento da sua prioridade em termos de ameaças. O caminho é manter a firmeza, ajudar a Ucrânia, aumentar a pressão sobre a Rússia, negociar com a China e deixar o tempo fazer o seu trabalho. Recordem o que Churchill dizia depois da crise de Munique (1938): “Tiveram de escolher entre a vergonha e a guerra; escolheram a vergonha; vão ter a guerra.” Depende de nós. Ainda depende de nós...


Lisboa, 17 de Março de 2022


Historiador

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