Quanto vale a Ucrânia para a China?

As vantagens económicas proporcionadas pela Ucrânia à China são múltiplas e de grande importância, mas nada se compara com a possibilidade de uma Ucrânia fora da esfera de influência dos Estados Unidos, da União Europeia e da NATO.


Nas velhinhas páginas da Arte da Guerra, grafadas pelo estratega chinês Sun Tzu, encontramos algumas das subtilezas da forma como a China se posiciona no mundo. Num das frases, o mestre exalta a “divina arte da subtiliza e do secretismo”. Acrescenta: “aprendemos a ser invisíveis e inaudíveis” (literalmente “sem forma, sem som”), “e assim podemos ter nas mãos o destino do inimigo”. Entre outras inspirações, nos dias de hoje, a política externa do gigante asiático parece acompanhar os mandamentos táticos da sabedoria milenar. Segue o que habitualmente se denomina “ambiguidade estratégica”, ficando, de forma subtil, numa posição de equilíbrio, uma diplomacia vaga.

Na guerra da Ucrânia, a China voltou a assumir a sua habitual posição ambígua, ora defendendo a integralidade territorial da Ucrânia, mas também compreendendo – quase apoiando – as ações militares russas. Oscilando, não deixa de desculpar a investida de Putin, de um país com quem tem amizade “sólida como uma rocha”. Encontramos ali uma cumplicidade estrutural numa aversão aos Estados Unidos, que tende a secundarizar a relação com Kiev.

Enquanto o conflito alastra, levanta-se uma questão: qual é a importância estratégica da Ucrânia para a China? As relações bilaterais são positivas, expressivas desde o início da década de 1990, notando-se um aumento substancial no volume das trocas comerciais. A Ucrânia exporta para o gigante asiático cereais, ferro e uma parte substancial de material militar, e importa, essencialmente, semicondutores e máquinas. Ao longo dos anos ganhou uma enorme relevância na cooperação técnico-militar com Pequim, incluindo na indústria espacial.

A China é o principal parceiro comercial da Ucrânia e não admira que em 2011 tivesse sido assinada uma declaração conjunta para o estabelecimento de uma “parceria estratégica”. Lembre-se que o primeiro porta-aviões Liaoning, símbolo do orgulho naval da China, é de proveniência ucraniana. Além disso, os motores de turbina a gás o fornecidos pelos ucranianos foram utilizados pelos chineses no desenvolvimento do seu destroyer Type 055.

A Ucrânia, pela proximidade com a Rússia, tem relevância estratégica para a China: serve de contenção à projeção de poder russo, mas também de porta de entrada para as suas exportações para a União Europeia, na sequência do acordo de comércio livre entre o país do leste europeu e a organização. Como as relações comerciais entre a UE e a China estão mais difíceis deste 2021, a “via ucraniana” surgia como uma alternativa segura até ao início da guerra com a Rússia. Neste prisma, o conflito prejudica os interesses económicos chineses, ainda que o que mais motiva Pequim sejam os objetivos políticos de médio-prazo.

O espaço geográfico ucraniano é também muito apetecível para a expansão da Nova Rota da Seda, interligando o Cazaquistão, através do Mar Cáspio, até o Azerbaijão, Geórgia e depois através do Mar Negro até Tchornomorsk. Surge a par com a iniciativa 17+1, fundada em 2012, em Budapeste, para promover a cooperação entre países da Europa Central e Oriental. Inclui-se a construção de infraestruturas, como linhas ferroviárias entre a China e a Europa, pontes, estradas e a modernização marítimo-portuária. A iniciativa está com algumas dificuldades em avançar, face ao novo quadro de tensões comerciais, um crescente ceticismo em relação à China, incluindo o desagrado com o tratamento dado à minoria uigure no país. Nos últimos encontros entre parceiros do 17+1 alguns países não se fizeram representar por chefes de Estado, foram anulados negócios e China foi acusada de estar a criar uma divisão entre a Europa e os Estados Unidos. Na sequência, a Lituânia saiu da iniciativa, travou investimentos chineses e anunciou a abertura de uma representação de Taiwan em Vilnius, o que desagradou fortemente a Pequim. Em protesto, a China reduziu as relações diplomáticas com a Lituânia ao nível de “encarregado de negócios”, enquanto Bruxelas foi dando apoio político ao país báltico.

Apesar de tudo, a Ucrânia, ainda que fora da iniciativa 17+1, foi continuando a atrair capital chinês para a modernização dos portos do Mar de Azov e, particularmente, do porto de Yuzhni, no Mar Negro, situado entre Odessa, e a península da Crimeia, controlada pela Rússia. Um dos objetivos seria aumentar a capacidade de exportação de granulados da Ucrânia em 15%, necessários para abastecer o mercado asiático. Os chineses foram desenvolvendo com cautela este projeto para não melindraram os interesses russos. Assim que se iniciou a invasão, os militares ucranianos suspenderam imediatamente o transporte comercial dos seus portos, prejudicando todos os projetos de investimento chineses em curso. Outros projectos que saem prejudicadas com o avanço da guerra são a construção da linha de metro de Kiev, e a ligação por comboio rápido do centro desta cidade a Borispil, o aeroporto mais movimentado da cidade.

Nos últimos anos, fruto da competição estratégica com os Estados Unidos, a China intensificou a tentativa de transferência de tecnologia ucraniana. Por exemplo, a empresa chinesa Skyrizon, com ligações ao Exército Popular de Libertação (EPL), tentou comprar a empresa ucraniana aeroespacial Motor Sich, que fabrica motores para helicópteros e aviões usados ​​em todo o mundo, incluindo no Antonov An-225 e no An-124, os maiores aviões de carga do mundo. A tentativa de aquisição foi objecto de alerta dos serviços de inteligência americana, por incluir propriedade intelectual e tecnologia que serviriam propósitos militares. Refira-se que a União Europeia e os Estados Unidos mantêm um embargo de armas à China desde 1989, devido às manifestações de Tiananmen. A Ucrânia seguiu as advertências americanas sobre as intenções chinesas e nacionalizou a empresa, desagradando a Pequim.

A mudança das relações sino-europeias, que colocam a China como “rival estratégico”, que contagiou os parceiros da iniciativa 17+1, também influenciou o governo pró-ocidental da Ucrânia. Algumas áreas de cooperação passaram a ser vistas com desconfiança, nomeadamente no domínio da cibersegurança, rede 5G e infraestruturas essenciais para o bom funcionamento da sociedade e da economia. Além disso, a cooperação militar que a Ucrânia tem mantido com outros países da NATO, incluindo o Reino Unido e os Estados Unidos, tenderam a criar resistência à cooperação por parte da China.

Todos estes fatores são também relevantes para se perceber o alinhamento estratégico de Pequim com Moscovo. As vantagens económicas proporcionadas pela Ucrânia à China são múltiplas e de grande importância, mas nada se compara com a possibilidade de uma Ucrânia fora da esfera de influência dos Estados Unidos, da União Europeia e da NATO. Apesar de todo o investimento no país, Kiev não repetiu os mandamentos de Pequim, mostrou-lhe resistência, alinhou-se com o “ocidente”. Esperavam da Ucrânia o mesmo comportamento que a Grécia, que passou a adotar posições pró-chinesas na União Europeia. Mas a China continua determinada em procurar uma ordem internacional alternativa, que não passe pelo domínio de Washington, incluindo uma tentativa de “desdolarização” do mundo. A Ucrânia pode ser muito útil neste seu desiderato, mas para isso Putin precisa de triunfar no conflito.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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