Raquel sonha a Europa a partir da mesa da sala de estar

Uma pequena associação no Funchal, sem sede, poucos meios para lá da presidente e um computador, coordena dois projectos europeus que envolvem países tão distantes e diferentes como a Bósnia Herzegovina, a Eslovénia ou a Roménia.

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Raquel Lombardi entregou várias candidaturas ao Erasmus+ e duas foram aprovadas Gregorio Cunha

São tantas as ideias, tantos os projectos que Raquel Lombardi não sabe por onde começar. Estamos ali, sentados à mesa da cozinha da casa desta professora madeirense de 53 anos. Três chávenas de café, uma caixa de chocolates turcos sobre a mesa. Raquel é torrencial. Uma plataforma para ensino à distância, o Skills for High Quality Online Education. Um manual para ultrapassar a fobia de falar em público V — Virtual Reality Against Public Speaking Phobias. O É como É da Gulbenkian, que olha para a arte como instrumento de capacitação física. As conferências internacionais. As consultas de medicina oncológica. Os concertos. Os livros infantis... Raquel é torrencial.

—“É melhor começar do início, não é?”

“É melhor.”

Então vamos. Esta história começa há sete anos, em 2015, quando Raquel Lombardi, a passar pelo segundo ciclo de um tratamento de quimioterapia a um cancro na mama, imagina uma associação que, através das artes, ajude a levar uma mensagem de esperança a doentes oncológicos. Nasce a Associação Cultural e de Solidariedade Social Raquel Lombardi (ACSSRL), que começa por promover concertos solidários, socorrendo-se de músicos amigos. Colegas do marido, italiano, professor de música no Conservatório — Escola das Artes da Madeira.

Foi dele que Raquel recebeu o “Lombardi”. É ele que acompanha “nestas coisas” da associação, que além dos eventos solidários tem proporcionado consultas gratuitas com um especialista de oncologia médica, que se desloca mensalmente ao Funchal. “Eu sei o dinheiro que gastamos. Que eu gastei para ir a Lisboa ouvir uma segunda opinião”, recorda, dizendo que este cariz social, esta vocação de solidariedade, a vontade de vencer a insularidade sempre foi o foco da acção da ACSSRL.

O Erasmus+ surgiu, assim, com naturalidade. Raquel é professora de Educação Especial há 25 anos e desde 2019 coordena o Programa Erasmus na EB1 Covão e Vargem, em Câmara de Lobos (Oeste do Funchal). Por isso, quando foi convidada por uma associação italiana de actividades culturais que já conhecia a ACSSRL para um programa de intercâmbio de jovens, não hesitou.

“Desde o início da nossa formação, sempre foi vontade da associação levar o projecto para fora de Portugal”, conta, explicando que o interesse nestes programas europeus passa pela preocupação em promover oportunidades para uma “participação activa” dos jovens no projecto europeu. “Enriquecem e revelam competências”, diz, lembrando que a condição de ilhéu constrange a mobilidade e pode inibir ideias e sonhos. Os preços das passagens aéreas são, muitas vezes, proibitivos, e estas “oportunidades são tesouros” que se podem oferecer aos jovens.

Estes intercâmbios abriram as portas da ACSSRL para todo um mundo novo. A associação foi convidada a integrar a EURORESO, uma plataforma com sede em Itália, que é presidida actualmente pelo espanhol Fernando Benavente. Congrega mais de 60 organizações de 30 países europeus e tem sido uma rede de contactos importante para os projectos que Raquel Lombardi quer desenvolver.

Manual e app para smartphone

Neste momento, a associação está envolvida numa mão-cheia de projectos europeus. A presidente da ACSSRL destaca dois. O Virtual Reality Against Public Speaking Phobias, que foi coordenado a partir do Funchal, e resultou num manual de boas práticas traduzido em sete línguas e numa aplicação para smartphone destinada a formadores. “Com a experiência e o conhecimento que adquirimos, queremos criar um pólo de intervenção precoce na região”, diz Raquel Lombardi, que é licenciada em Educação de Infância, mas tem ampliado a formação em áreas tão diferentes como a Educação Especial, Direitos de Menores em Risco, Educação Artística e Organização e Gestão Escolar. É também autora de livros infanto-juvenis como “Tixa a Presidente!” ou “Elegato”.

“Não consigo estar parada, sabe? Não consigo.” O marido, Luciano, ri-se. Serve-se de um café e regressa à sala de estar, onde Raquel Lombardi montou o escritório da ACSSRL. Os projectos, os contactos, as reuniões virtuais, as burocracias, e são tantas as burocracias, as papeladas a preencher... Tudo é materializado ali, na sala de estar da casa onde vive com o marido e dois gatos. Na varanda, vê-se o Funchal a descer para o mar, mas Raquel Lombardi vê mais longe.

Sem falsas modéstias. “Temos feito um enorme trabalho na Madeira e fora da região. Faríamos ainda mais, muito mais, se tivéssemos uma sede física”, diz, reforçando que, com um espaço próprio, a ACSSRL pode ter uma intervenção “ainda mais” activa, mais “próxima” das pessoas. “Temos a promessa de cedência de uma sede até Junho. Estou muito confiante”, acrescenta, exemplificando com as consultas mensais com o médico especialista em cancro da mama, que beneficiariam bastante com um espaço próprio.

Para já, a ACSSRL é Raquel Lombardi, um computador e a mesa da sala de estar. E não é pouco. Vão entrar mais duas pessoas em breve, através de um programa de Instituto de Emprego da Madeira, e existe uma rede de contactos com mais de 30 nomes. “São colaboradores que quando precisamos contactamos e que têm uma disponibilidade, uma vontade de ajudar enorme”, elogia, saltando para o segundo projecto europeu que está a coordenar: o Skills for High Quality Online Education.

Instrumentos para capacitar

“O principal objectivo é criar produtos intelectuais ao nível da formação que efectivem uma educação online de qualidade”, explica, acrescentando que o foco está em melhorar as competências digitais de alunos e professores para favorecer aprendizagens significativas, melhorando o desempenho académico e combatendo assim o abandono escolar. No fundo, sintetiza, é desenvolver uma plataforma digital semelhante às que existem no mercado, como o Teams da Microsoft, mas inclusiva. Que possa ser utilizada sem custos para as escolas, professores e alunos. Isto, ao mesmo tempo que se desenvolvem ferramentas que auxiliem esse processo de aprendizagem, porque “embora estudantes e professores sejam alfabetizados digitalmente”, não tinham (têm) aptidões, competências para o ensino online.

A ideia, conta, surgiu de um parceiro da Roménia e chegou por e-mail a desafiar a associação a coordenar o projecto. Raquel Lombardi não sabe dizer que não. “Durante o confinamento, percebemos que estávamos a viver uma mudança no paradigma da educação e era preciso fazer alguma coisa”, justifica, explicando que o Skills for High Quality Online Education, que recebeu perto de 270 mil euros de financiamento do Erasmus+, envolve, além de Portugal através da ACSSRL, seis países: Roménia, Bósnia e Herzegovina, Eslovénia, Bulgária, Turquia e Espanha.

“Numa sociedade digital como é a de hoje, é urgente criar condições e preparar alunos e professores para a educação à distância”, acredita Raquel Lombardi, dizendo que no final do projecto, que tem várias escolas madeirenses como parceiras, estudantes e professores “poderão conduzir um processo educativo de qualidade”, através do ensino online.

O projecto arrancou no final de Fevereiro, com uma “kickoff meeting” no Funchal, e tem a conclusão prevista para Novembro do próximo ano. Até lá, muito trabalho será feito. Muitas discussões, reuniões, debates. “Cabe a quem coordena o projecto fazer a ponte entre os vários parceiros. Ouvindo as preocupações, percebendo as dificuldades, procurando soluções. Só assim, as coisas vão funcionar”, sublinha.

Antes, existe todo um trabalho exaustivo de preparação da candidatura junto da Agência Nacional Erasmus. Os projectos têm de ser devidamente fundamentados e de contar com parceiros certos. “Temos de preencher o formulário da candidatura de forma clara, defendendo o projecto que será depois avaliado, podendo ser aprovado ou não”, explica.

A ACSSRL, por exemplo, teve dois projectos reprovados pela Agência Nacional — o Sustainable Awareness Via Environment e o Together in Europe Forever , precisamente por não estarem devidamente fundamentados. Não faz mal. Raquel Lombardi tem muitos sonhos para agarrar e a Europa está mesmo aqui. “Tenho um projecto que estou a preparar que vai ser espectacular. E há outro também. Depois eu conto.”

Raquel é torrencial.


Este artigo faz parte do projecto A Europa que Queremos, apoiado pela União Europeia.

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