“Parece que estamos a viver a calma antes da tempestade”

Já não se foge de Odessa como quando a guerra começou, há quase três semanas, mas também há quem não possa continuar à espera e acabe por partir. Quem foge agora quase não leva planos. O medo é sempre a razão.

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Refugiados a entrar no autocarro na Moldova Miguel Manso�

Peter, como se identifica o electricista de Odessa que tem passado os dias a transportar amigos e conhecidos para a fronteira da Ucrânia com a Moldova, em Palanca, chega cedo, com mais fotografias do filho recém-nascido e também do boletim do hospital que certifica que teve um rapaz bem grande: 4,7 quilos no momento do nascimento. “Ele está bem, mas passou horas no abrigo, porque tivemos novo alerta de bomba durante mais de cinco horas e ainda não acabou. Os navios russos estão mesmo aqui à frente”, diz. Depois do primeiro grande fluxo de ucranianos a abandonar o país, mal a guerra começou, há quase três semanas, que se vêem de novo pessoas a fugir quase sem planos, diz uma das voluntárias na fronteira. O medo é sempre a razão.

O alerta de bomba de que fala Peter não se faz sentir no centro de Odessa, onde a noite decorreu sem perturbações. Nem mesmo a ausência total de luz, que é exigida depois do recolher obrigatório, diminuído no domingo em uma hora (passou a ser entre as 20h e as 6h, em vez das 19h e as 6h), parece ser levada muito a sério por ali: há janelas sem cortinas totalmente iluminadas, sem qualquer preocupação de se tornar um chamariz para um ataque.

A razão pode ser simples: há muitas pessoas que não acreditam que Vladimir Putin ordene um ataque a Odessa, com bombardeamentos que ponham em risco o coração da cidade com fortes ligações à Rússia e muita querida do seu povo. O cerco, ouve-se entre alguns moradores, parece ser a hipótese mais expectável. Mas ninguém tem a certeza e os dias vão correndo. “É impressionante como as pessoas se adaptam rapidamente às situações”, admirava-se Dmytro Kyryk, ainda no dia anterior.

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Vera Iljina, de 28 anos, com o cão Chicho e Maria, de cinco anos Miguel Manso

Mas também há quem não possa continuar à espera e acabe por partir, depois de ter aguentado até agora. Apesar de o movimento em Palanca não ser hoje comparável ao dos primeiros dias da guerra, Tatiana Chebac, de uma organização de advogados a trabalhar nesta fronteira com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a Law Center of Advocates, não está sossegada. “Parece que estamos a viver a calma antes da tempestade, porque sabemos o que está a acontecer em Mykolaiv e ainda esperamos que o volume de pessoas aumente”, diz.

Pontos de despedida

Há outra razão para estes dias mais calmos que se têm vivido: o boato que correu entre as pessoas de que a fronteira teria sido fechada, depois de terem sido colocadas barreiras e pontos de controlo na estrada de acesso. Há vários, vigiados por homens civis armados, das forças de defesa territorial, o último dos quais, a menos de cinco minutos da fronteira, não deixa passar os homens entre os 18 e os 60 anos. Ou não deixa passar quase todos os homens. Peter, por exemplo, consegue seguir sem dificuldade, depois de já se ter tornado um rosto familiar entre os vigilantes com camuflados, tantas foram as vezes que por lá passou. “Há homens que entregam o passaporte, garantindo que só vão levar as famílias e depois regressam, mas que acabam por não voltar. Alegam razões políticas na fronteira e conseguem passar. Já há aí um monte de passaportes nas mãos deles, por causa disso”, conta, enquanto passa, ele próprio, sem entregar qualquer documento aos controladores, confiantes de que ele já volta.

Para a maior parte dos homens, aquele é mesmo o ponto de despedida. A partir dali, já só se vêem quase mulheres e crianças, a entrar no autocarro gratuito que as deixa junto ao posto fronteiriço. Mas também estas pessoas que hoje cruzam a fronteira têm características diferentes das que se viam ainda na semana passada, diz Tatiana Chebac, que está ali desde os primeiros dias do conflito provocado pela invasão russa da Ucrânia, a 24 de Fevereiro. “Até quinta-feira passada vinham pessoas com mais dinheiro, que tinham um plano. Agora perguntamos às pessoas que chegam quando decidiram vir e respondem ‘hoje de manhã, ontem ao final da tarde’. É uma decisão de última hora e há pessoas mais vulneráveis, idosos e com deficiências. São pessoas que esperaram até ao último minuto que a situação mudasse”, conta.

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Caminho de Odessa para Palanca Miguel Manso�

Foi assim com Nataly Yielya, 31 anos, de Odessa. Passou a fronteira na manhã desta segunda-feira, com a mãe, uma tia, a irmã, o sobrinho de dois anos e os dois cães da família, Vera e Maya. Tal como todos os outros refugiados que agora chegam a Palanca, foram levados para um novo espaço, muito perto da fronteira, onde há informação, comida, zona de descanso e carrinhas e autocarros gratuitos para levar as pessoas para o destino que escolhem: Roménia ou Chisinau. “Decidimos vir ontem, não temos planos. Eu não tenho medo, mas elas têm”, justifica, horas depois, já em viagem para a capital da Moldova. Então preferia ter ficado? Sacode um pouco a cabeça e faz um leve esgar. “Sim, talvez”, afirma, no veículo quase só com mulheres, crianças, cães (há três) e o corredor central totalmente coberto de malas.

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Patrícia Carvalho,Miguel Manso

No banco atrás do dela, Vera Iljina, de 28 anos, segura o cão Chicho e não contém as lágrimas enquanto recorda a partida de Mykolaiv, sob o olhar atento da filha Maria, de 5 anos. “É muito, muito difícil, estou sempre a chorar. O meu marido está em casa e não sei o que vai acontecer. Tinha medo todos os dias em casa, mas é difícil partir”, diz, entre lágrimas. Além do marido, Vera deixou os pais na cidade que tem estado a ser bombardeada pelas forças russas. Por enquanto, vai para casa dos sogros, em Itália, com a filha e o cão.

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Vera Iljina e Maria, de Mykolaiv Miguel Manso�
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Miguel Manso�
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Nataly Yielya, 31 anos, de Odessa Miguel Manso�

Os cavalos de Liv Tolsager

Mas se há sempre grupos de pessoas a deixar a Ucrânia naquela fronteira a cerca de 50 quilómetros de Odessa – “antes tínhamos filas até às 4h ou 2h, agora vêm em ondas, há um grupo, depois esvazia, depois outro”, diz Tatiana Chebac –, também há quem queira entrar, mesmo que temporariamente. “Vão visitar familiares”, explica um voluntário sobre um grupo de pessoas que, no domingo, esperava para entrar na Ucrânia, carregada de caixotes. Por perto, uma menina segurava um vaso com uma orquídea rosa, protegida por celofane.

Na fila dos veículos que esperavam para cruzar a fronteira para a Ucrânia estavam também a dinamarquesa Liv Tolsager e dois romenos, incluindo Burlag Dalvan, que nos recebe com um: “Podemos falar português, que trabalhei muitos anos em Angola.” Os três são responsáveis por dois veículos com atrelados para transporte de cavalos. E é exactamente o que vão buscar, numa localidade a cerca de 20 quilómetros da fronteira. “Vamos buscar quatro cavalos. Os donos têm carro, mas não têm como transportar os animais”, conta a dinamarquesa. Responsável por uma escola de equitação, Liv Tolsager não hesitou assim que ouviu o pedido de ajuda da família ucraniana para retirar os animais, partilhado nas redes sociais: meteu-se num avião para a Roménia e está agora ao volante de um dos carros recrutados para o efeito, recheado com 900 quilos de comida.

O grupo de três voluntários cruzou a fronteira de Palanca antes do meio-dia de domingo, convencido de que estaria de volta ainda nesse dia, para regressar à Roménia. A realidade foi um pouco mais complicada. “Foi muito difícil. Retirámos da Ucrânia quatro cavalos, seis pessoas e dois cães. Um dos cavalos não queria entrar na transportadora e demorámos cerca de cinco horas a fazê-lo entrar”, contava, esta segunda-feira, por mensagem escrita. “Trouxemos mais pessoas do que o esperado. Uma das donas dos cavalos estava a chorar e a abraçar-me, porque eu queria carregar os cavalos em vez dela [no atrelado], já que estava tão nervosa e triste. Teve de deixar o marido e o filho”, conta.

Às 18h desta segunda-feira o grupo ainda estava na estrada, depois de ter passado a noite gelada nos veículos. Liv Tolsager contava que chegassem ao destino, na Roménia, umas seis horas depois. Por essa hora, já o recolher obrigatório teria entrado de novo em vigor na Ucrânia, para mais uma noite de espera pelo que a guerra ainda tem para levar ao país. E do campo montado junto à fronteira de Palanca já teria partido o último autocarro do dia, para cada um dos dois destinos possíveis, Roménia ou Chisinau. “Cerca de 95% das pessoas que chegam aqui quer ir para a Roménia”, dizia, ao final da manhã, um voluntário. Porquê? “Europa”, responde simplesmente.

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Caminho de Palanca para Chisinau Miguel Manso�
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