Aktion T4 e o fémur regenerado

Perdoai as Nossas Ofensas é uma curta-metragem que revisita o programa nazi de extermínio das pessoas com deficiência.

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"Nós falhámos com a nossa comunidade no passado e podemos voltar a fazê-lo" Paulo Pimenta/Arquivo

Chegou recentemente ao catálogo da Netflix uma curta-metragem que revisita o Aktion T4, o programa nazi que tinha como objectivo o extermínio de pessoas com deficiência. Chama-se Perdoai as Nossas Ofensas (2022) e foi realizada e protagonizada por artistas com deficiência que poderiam ter sido vítimas se vivessem na Alemanha durante o Terceiro Reich: Ashley Eakin e Knox Gibson, respectivamente. O filme mostra-nos como Paul, um menino que tem o braço direito amputado, vivencia a perseguição àqueles que são considerados um peso para o regime alemão.

A mãe de Paul dá aulas ao próprio filho numa escola que, contra a sua vontade, segue o currículo pedagógico imposto pelo regime. Numa aula de matemática, a professora vê-se obrigada a ensinar um cálculo cruel: quanto o povo alemão “perde” ao arcar com os cuidados e a alimentação de uma pessoa com uma doença hereditária? Um aluno pergunta: “Se custa tanto cuidar destas pessoas, o que fazemos?” Outro responde: “Matamo-las.”

Parece-nos hoje aterradora a ideia de eliminar aqueles que, sob a perspectiva nazi, consomem recursos sem nada produzir. Mas uma das premissas que esteve na base do Aktion T4 ­— a de que a vida de alguém com deficiência tem menos valor — parece regressar quando atravessamos momentos de crise. Durante esta pandemia, a deficiência chegou a ser temida como um critério de triagem para decidir a quem são atribuídos recursos hospitalares num contexto de escassez — um ventilador numa unidade de cuidados intensivos, por exemplo.

Em cenários de guerra, não é diferente. Muitos dos abrigos em Kiev não têm acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida. O Fórum Europeu para a Deficiência afirma que há ucranianos com deficiência numa situação “terrível”, “forçados a ficar em casa” e “sem saber para onde podem ir para ficarem seguros” enquanto a Rússia invade o país. Existem 2,7 milhões de pessoas com deficiência na Ucrânia. Parte deste grupo está a ficar para trás, mais exposto a bombardeamentos ou outras formas de violência. Uma sociedade que não prevê bunkers acessíveis está, ainda que indirectamente, a definir quem importa proteger.

Ao ver Perdoai as Nossas Ofensas, lembrei-me da célebre resposta da antropóloga Margaret Mead (1901-1978) quando lhe perguntaram qual o objecto que assinala o início da nossa civilização. Os interlocutores provavelmente esperavam que Mead escolhesse um pote de barro, pedras de amolar ou mesmo um anzol. A investigadora surpreendeu todos os presentes ao eleger um fémur cicatrizado, pertencente a um sítio arqueológico com cerca de 15 mil anos.

Pode um osso ser um berço civilizacional? Sim, porque para Margaret Mead um fémur regenerado materializa o cuidado de uma comunidade com quem está vulnerável. Segundo o relato disponível no livro The Best Care Possible, do médico Ira Byock, a antropóloga terá então explicado que alguém com uma fractura femoral há milhares anos só poderia sobreviver se beneficiasse do apoio dos pares. Quem o acompanhava se encarregou de proteger, alimentar e transportar o doente até que recuperasse a autonomia. Se fosse um animal a partir a perna, muito depressa se tornaria a presa de um outro elo da cadeia alimentar. A pessoa a quem o tal fémur pertencia só sobreviveu porque vivia num grupo solidário — e este desvelo na hora frágil é uma raiz da nossa civilização.

Perdoai as Nossas Ofensas é um filme incómodo porque nos recorda que as raízes civilizacionais não são uma garantia perene. Nós falhámos com a nossa comunidade no passado e podemos voltar a fazê-lo. A História demonstra-o em capítulos vergonhosos como o Aktion T4. Ter a consciência da possibilidade da falha nos torna mais vigilantes. Mas mais que revisitar o passado, esta curta imagina histórias alternativas. Revisitamos o terror nazi mas, ao mesmo tempo, vemos uma criança com deficiência a lançar-se num terreno de resistência contra o opressor, a arriscar a própria pele para proteger alguém em perigo. Esta curta-metragem, que nos conduz a este lugar de desconforto em tempos de peste e guerra, também renova a confiança na civilização que, com todos os percalços, nos permitiu chegar até onde estamos hoje.

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