A única rabina da Ucrânia deixou o país por causa da guerra

Julia Gris não conseguiu aconselhar os membros da sua congregação quando lhe perguntaram o que fazer perante a invasão russa. Uns saíram, como ela, e outros ficaram.

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A rabina Julia Gris Facebook

A única rabina da Ucrânia saiu do país e ainda está a tentar processar o que aconteceu depois de ter tomado a decisão e feito o difícil caminho de saída de Odessa, a cidade onde viveu durante os últimos 22 anos, até à Polónia, onde está agora a preparar-se para partir de novo.

Julia Gris, 45 anos, conta que nada foi fácil na saída. Foi com a filha, Izolda, 19 anos, de Odessa até Lviv e daí conseguiu uma boleia até o mais perto da fronteira com a Polónia que era possível. Perto: quase 30 km, que as duas fizeram a pé, com as malas e os seus dois gatos. Aí esperaram quase 40 horas sem comida, água ou acesso a casas de banho para passar para o outro lado.

Na bagagem estavam as velas para o shabbat, que a rabina usou nos serviços religiosos do sábado passado, um transmitido online para a sua congregação reformista de Odessa, que fundou há mais de 20 anos, outro para um pequeno grupo na capital da Polónia, Varsóvia, onde está agora.

O serviço do seu segundo shabbat em segurança foi semelhante ao que sempre fez: as velas eram as mesmas, como sempre, a filha tocou e cantou. Mas “havia tantas histórias, tanto choro, tanta dor”, contou à Associated Press. “Para os que estão cá, e ainda mais para os que estão na Ucrânia.”

Liderar uma comunidade numa altura destas é um enorme desafio. Desde os primeiros sinais de que a Rússia podia intensificar acções militares na Ucrânia até ao dia da invasão, “pediam-me conselhos sobre o que fazer”, contou, numa conversa por vídeo organizada pelo Queens Jewish Community Council (EUA).

“Eram perguntas muito difíceis para situações em que nunca estivemos”, diz. “Eu não lhes podia responder.” Cada pessoa, cada família, foi decidindo por si: muitos membros da congregação saíram de Odessa e estão em países como a Polónia, como Gris, ou como a Roménia, “a tentar encontrar um sítio calmo na Europa”, ou mais longe, em Israel, mas outros decidiram ficar.

A Ucrânia tem uma das maiores comunidades judaicas do mundo (é a quarta da Europa), que agências judaicas estimam ser 200 mil pessoas, nem todas religiosas, e muitas estão, como em muitas outras comunidades, a sair do país. Julia Gris contou que era um sítio onde “era fácil ser-se judeu”.

Nascida em Briansk, Rússia, há 45 anos, o ser judia ou russa nunca foi um problema nos quase 22 anos que Julia Gris viveu em Odessa. Mas o seu passaporte russo foi o que a deixou mais nervosa depois do início da invasão a 24 de Fevereiro. E com razão: as autoridades ucranianas congelaram a sua conta bancária. As desconfianças custam-lhe, embora perceba a reacção de um país que está sob ataque. “Tornei-me inimiga porque tenho cidadania de um país inimigo do meu outro país, a Ucrânia.”

A mãe, que ainda vive na Rússia, não acreditava que a Ucrânia estava mesmo a ser atacada, conta Gris, denunciando os efeitos da propaganda russa. “Tive de lhe dizer que conseguia ouvir as sirenes e as bombas a cair”, relata.

O objectivo de Julia Gris é agora ir para o Reino Unido. Foi em Londres que foi ordenada, depois de 20 anos a querer ser rabina, o que não era fácil para uma mulher. O primeiro rabino que conheceu disse-lhe que ela era tão inteligente que poderia ser mulher de um rabino, conta – uma posição importante na família e na sociedade, reconhece. “Mas eu, no meu maximalismo juvenil, só vi o telhado de vidro”, contou numa reportagem da rádio Deutschlandfunk de 2018. Depois conheceu a primeira rabina da União Soviética, a americana Ariel Stone, e viu a possibilidade mais perto. “Levei 20 anos a conseguir.”

Desde 2014 é a rabina de uma comunidade reformista de Odessa, num país onde existem apenas duas destas comunidades judaicas. Quando estudou em Londres e em Israel, Gris tinha possibilidade de ir para onde quisesse. Escolheu voltar a Odessa, para a sua comunidade, cuja abordagem progressista era tão importante para si, disse à Deutschlandfunk.

Agora ainda está a tentar processar o que aconteceu. “É difícil imaginar como se sente alguém que perdeu tudo. Tenho uma chave do meu apartamento, mas não tenho apartamento”, contou na conversa por videochamada. “Quase aceito a ideia que posso não voltar à Ucrânia durante muito tempo.”

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