Comprimidos de Largactil: hibernar a mente?

O quadro Os Comprimidos de Largactil foi feito por um paciente do Hospital Miguel Bombarda e apresentado numa exposição em 1963. É uma referência a um fármaco que revolucionou o tratamento dos estados de agitação psíquica. Para além da pintura, o autor deixou um texto do qual transparece uma “crítica” da Psiquiatria.

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Os Comprimidos de Largactil, s/d, s/t Colecção privada

Uma pintura com o título Os Comprimidos de Largactil, produzida por um paciente anónimo no Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda (1848-2012), pelo seu rebuscamento plástico, um óleo sobre madeira de pequeno formato quadrangular, atraiu a minha atenção. A pintura é complementada com texto dactilografado das palavras de interpretação da obra pelo seu autor, que transforma os dois “documentos” em provas sobre experiência psiquiátrica do sujeito. No que é representado e escrito, o autor projecta um momento essencial da rotina hospitalar: a da toma da medicação e os efeitos dessa toma no sujeito. Sem o saber, o título da obra lembra-nos a “revolução” ocorrida na psiquiatria do século XX, em parte devida à descoberta da cloropromazina (CPZ).

O uso desta droga está associado ao nome do fisiologista e cirurgião naval e francês Henri Laborit (1914-1995) e à investigação que este desenvolveu sobre a “hibernação artificial” (1952). A cloropromazina foi depois generalizada por médicos psiquiatras no tratamento dos estados de agitação psíquica. Alguns, de modo laudatório, consideraram que a CPZ marcou o princípio do fim dos manicómios, contribuindo para o “decréscimo” do número dos doentes internados (Jeffrey Lieberman, Psiquiatras —​ Uma História por Contar, Temas e Debates, Lisboa, 2015).

Largactil é o acrónimo de Large Action (1952), na Europa, o nome comercial encontrado pela farmacêutica Rhône Poulenc. Nos Estados Unidos da América, é conhecido como Thorazine. Em meio psiquiátrico foi, pela primeira vez, introduzido no Hospital de Saint-Anne de Paris por Jean Delay (1907-1987) e Paul Deniker (1917-1998). Delay chamou “neurolítico” (hibernação) a este método sobre o qual, durante vários anos, foram organizados múltiplos simpósios e escritas muitas páginas em revistas de Psiquiatria.

Referindo-se ao ambiente vivido no pavilhão que, em Saint-Anne, o seu assistente Pierre Deniker dirigia, Jean Delay escreveu algures que: “A fúria e a violência deram lugar à calma e à paz e os resultados com a CPZ podiam ser medidos no hospital em decibéis, registados antes e depois da sua administração.

Em Portugal, a primeira referência ao uso deste fármaco surge num artigo publicado em 1955, dos psiquiatras Fragoso Mendes (1922-1981) e Pistacchini Galvão (1925-2017), ambos associados à Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de Lisboa (Hospital Júlio de Matos), cujo director era o professor Barahona Fernandes (1907-1992).

Na segunda metade da década de 1950, a publicidade ao Largactil é feita nas páginas do prestigiado Jornal do Médico. No artigo acima referido, com o título “Experiência clínica com a cloropromazina (4560 R.P.) em psicoses” (1955), Mendes e Galvão acentuavam os benefícios da administração do novo fármaco porque “não só acalmava os doentes, como os tornava mais acessíveis à terapêutica convulsionante”, além de, socialmente, os tornar mais aptos para as actividades de ergoterapia promovidas nos hospitais psiquiátricos nacionais.

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Publicidade Largactil, Jornal do Médico, XXIII, 587, 1957, p.

Outros psiquiatras consideraram que os pacientes tratados com a cloropromazina agiam como se tivessem sido “quimicamente lobotomizados”. Mas a analogia à lobotomia foi sendo mitigada pela forma “espectacular” como o fármaco actuava sobre a melhoria, por exemplo, dos sintomas positivos e negativos da esquizofrenia, sem, no entanto, a tratar, por não possuir qualquer propriedade antipsicótica específica. A CPZ, de facto, foi o neuroléptico mais receitado em várias décadas na Europa e nos EUA.

Esforço criador

A pintura Os Comprimidos de Largactil, objecto deste artigo, encontra-se identificada no folheto da I Exposição de Artes Psicopatológicas (1963) organizada no Hospital Miguel Bombarda. Nesse folheto, ao título da obra é associada a entidade nosológica atribuída ao autor da obra: esquizofrenia paranóide. No texto introdutório do folheto, os organizadores da exposição escreveram: “… os trabalhos expostos são livremente executados pelos nossos doentes em regímen de terapêutica ocupacional. O fim da nossa exposição é mostrar ao público que o doente mental não é um protótipo de ruína humana como geralmente se pensa mas um indivíduo capaz de realizar um esforço criador.”

Na exposição foram mostrados 102 trabalhos, parte deles conservados no “acervo artístico” do hospital; outros foram vendidos durante a mostra. No Hospital Miguel Bombarda, o livro L’Art Psychopathologique (1956), do psiquiatra Robert Volmat (1920-1998), foi lido com interesse, nos primórdios dos anos 1960, por alguns colaboradores, psiquiatras e terapeutas. Este livro suscitou a recolha e incremento de actividades de criação plástica considerados como “material laboratorial” para a compreensão das doenças mentais.

O interesse pelas produções artísticas espontâneas dos “loucos” viu luz, em Portugal, na viragem do século XIX para o século XX, pelo médico, escritor e crítico literário português Júlio Dantas (1876-1962). A sua tese Pintores e Poetas de Rilhafoles (1900), trabalho pioneiro no contexto europeu, foi influenciada pelas interpretações do psiquiatra e antropólogo americano Aleš Hrdlička (1869-1943).

A figura tutelar da psiquiatria portuguesa Miguel Bombarda (1851-1910), orientador de Dantas, escreveu sobre este tópico em “Arte e Manicómios (A Medicina Contemporânea, 1900). Bombarda usou as obras plásticas e os textos dos doentes mentais no seu Curso Livre de Psiquiatria. Para Bombarda, Dantas ou Cesare Lombroso (1835-1909), as obras dos “alienados” eram destituídas de mérito artístico; o seu valor seria aceitável se os trabalhos servissem como complemento ao diagnóstico da perturbação mental e, como Dantas propunha, se adequassem à educação dos críticos de arte.

Os comprimidos “pelas costas”​

A pintura Os Comprimidos de Largactil foi produzida num tempo em que o referencial da “arte psicopatológica” estava muito activo em França e os estudos experimentais sobre este tema despontavam em Portugal. A expressão escrita, verbal e pictórica estaria em linha directa com as nosologias propostas para as doenças mentais — um quase-reflexo da patologia sem, no entanto, pertencerem ao mundo da História da Arte. As obras plásticas produzidas como as que aqui se mostram foram, quase sempre, tratadas como “documentos” e não como obras de arte.

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Os Comprimidos de Largactil. Óleo sobre madeira, 35, 5 cm X 35,5 cm, 1963 Colecção Privada

Do autor da pintura são conhecidas duas obras com o mesmo formato e estilo plástico, ambas adquiridas durante a mencionada exposição no Hospital Bombarda. A outra pintura representa uma enfermeira nua, com os dispositivos de electrochoques nas mãos. Não sabemos o nome do autor nem há dados supletivos sobre a sua biografia e, menos ainda, sobre as razões que levaram ao seu internamento psiquiátrico. O que é particularmente notável é a pintura ser acompanhada por uma descrição do doente, dactilografada por um enfermeiro.

Nestes dois “documentos” — pintura e texto —, transparece uma “crítica” da Psiquiatria. Esta “crítica” brota da expressão do humor, do prazer que o uso e alívio da tensão permitem ao sujeito quando discursa textualmente e pictograficamente sobre um medicamento que não apenas trata por tu mas que revela o que sente quando este actua em si. Escreveu Sigmund Freud: “O humor não é resignado — é rebelde. Não significa apenas o triunfo do ego, mas igualmente o do princípio do prazer que aqui consegue pronunciar-se contra as condições desfavoráveis da realidade” (Der Humor, Almanach, 1927).

A pintura e o texto ilustram este humor e tensão emocional vivida e projectada do seu actor, a que Freud se refere. O plano recuado da pintura faz alusão a uma parede organizada por pequenos quadrados que poderá ser também referência às grades do espaço de confinamento. É uma obra racional e elaborada nos seus detalhes. No primeiro plano, surge uma figura feminina, que poderá ser uma representação da pessoa com “autoridade” para executar a rotina da administração da medicação, escolhida para a revelação do “escárnio”. A cabeça da figura tem penteado com franja e da boca sai uma língua vermelha. Por debaixo do queixo surge uma configuração triangular branca, com uma linha de contorno amarela; talvez seja o decote do vestido azulado da figura. Na mão esquerda, segura dois objectos circulares brancos, representação dos comprimidos de Largactil. Os detalhes da mão são impressivos no modo quase impecável como é representada. A pintura, no seu todo, revela talento artístico do autor.

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Folheto I Exposição de Artes Psicopatológicas (1963) Biblioteca /Arquivo do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa

O texto de interpretação da pintura é uma descrição concisa do acto da toma do medicamento e, mais ainda, sobre os seus efeitos. Como se se tratasse de um acto sub-reptício — a mão dá “à nuca” os comprimidos de Largactil “pelas costas” e não os dá directamente.

Como fundo, surgem outras duas formas circulares concêntricas: um círculo luminoso, por dentro pontilhado a amarelo. A atenção de quem observa a pintura recai “primeiro” sobre a auréola, que tem algum “efeito hipnótico” e, depois, sobre o rosto da figura. Dois círculos internos aos quais chama “bolas”, um do lado esquerdo e o outro do direito da cabeça. Escreve serem as “retinas” (íris) dos olhos que o Largactil faz “transparecer [aparecer] o olhar fixo”. Talvez o efeito do medicamento acentue o foco do olhar sobre as coisas (?).

São olhos grandes — as “retinas”, que observam o que se passa à volta e que também “olham para dentro” do sujeito. Talvez um efeito paradoxal de transformação de um estado para outro estado psíquico do que diz ser a “desintegração das ramificações sanguíneas” e a “transformação dos direitos em contrários”. A criatividade é estimulada pela crítica ao efeito hipnótico da droga no sujeito.

Nesta pintura, encontrámos duas dimensões de relevo: a qualidade estética-formal do que foi imaginado e materializado e a narração que informa sobre a experiência sensorial do indivíduo doente alvo da terapêutica farmacológica. Sem o saber, este “artista” participou na transformação de paradigma ocorrida na Psiquiatria no século XX, em ruptura com os “tratamentos” anteriores, que continuam a impressionar-nos através da leitura dos textos e a observação de gravuras e pinturas de várias épocas.

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Transcrição dactilografada da interpretação da pintura Os Comprimidos de Largactil pelo próprio Colecção Privada

O que este autor anónimo não “previu” foi que a sua pintura e o texto de interpretação da mesma, ditado ao enfermeiro do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, seriam redescobertos seis décadas depois e motivo actual de reflexão.


Investigador

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