A Europa não está em guerra?

“A Europa vive nessa zona cinzenta que não é ainda a guerra, mas que já não é a paz”. É esta a nova realidade.

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1. É preciso reconhecer que as decisões europeias têm de levar em conta múltiplos factores e que ainda não sabemos o suficiente sobre a discussão entre os líderes europeus na cimeira informal de Versalhes. Não é possível, portanto, avaliar em toda a sua extensão o significado da relativa prudência dos resultados.

Foi no mesmo palácio sumptuoso que os vencedores da Grande Guerra assinaram, em Junho de 1919, os termos da rendição da Alemanha imperial. Como lembrou o Presidente francês, o espírito de vingança que prevaleceu entre os vencedores acabou por lançar as sementes da II Guerra Mundial. Durante a conferência de imprensa final, Emmanuel Macron disse e repetiu que a União Europeia “não está em guerra”, aceitando os limites do que pode fazer pela Ucrânia.

Reafirmou que os europeus estão preparados para decretar novas sanções, no caso da escalada da guerra de Putin se intensifique, como se não fosse isso que está a acontecer a cada momento. Ursula von der Leyen anunciou mais sanções, que devem ser tomadas ao nível do G7. O embargo ao petróleo ou ao gás ficam para mais tarde. A relativa prudência das palavras do Presidente francês talvez queira dizer que a Europa tenta manter um canal aberto com o Kremlin para deixar a Vladimir Putin a possibilidade de uma saída. Mas também sabemos que Macron e Olaf Sholz falaram com o Presidente russo antes da cimeira e que não esconderam o seu pessimismo. Há sérias razões para isso.

A possibilidade de utilização de armas químicas e biológicas cresce a cada minuto. Os bombardeamentos indiscriminados às cidades intensificam-se, aumentando a cada hora o número de vítimas civis. O cerco a Kiev aperta-se. A ofensiva militar expande-se para novas áreas mais a Ocidente, o que quer dizer, mais próximas da fronteira da Polónia.

2. Esta relativa cautela é, talvez, a principal explicação para a União não ter ido mais longe do que oferecer à Ucrânia um lugar na “família europeia” e a promessa do aprofundamento do Acordo de Associação assinado em 2014, que esteve na origem da primeira invasão do país. De resto, disseram o que têm dito: que fazer parte da União impõe uma série de condições e que as negociações são sempre um longo processo. Portugal levou dez anos, argumentou António Costa. Nos anos 1980, os cálculos dos então Nove eram meramente económicos. O mundo mudou, entretanto, para além de qualquer reconhecimento.

A declaração de Versalhes fica muito aquém dos apelos desesperados do Presidente Zelenski que, entendidos no seu significado político, não querem dizer uma adesão no curto prazo, mas apenas uma esperança para os ucranianos e uma mensagem directa ao Kremlin de que não será a guerra a travar o destino de uma Ucrânia independente e democrática. Teria sido da parte da União uma decisão política de enorme coragem. Talvez o mais forte sinal de que os seus dirigentes entenderam, na sua total dimensão, a “viragem no curso da Historia” que a Europa está a viver. “Sou o primeiro a pensar que uma mensagem de encorajamento nesta frente [a candidatura ucraniana à UE] seria de grande ajuda. Mas, ao mesmo tempo, temos de respeitar o que outros países dizem e a sua cautela”, disse o primeiro-ministro italiano Mario Draghi, no final da reunião.

3. Apesar dos esforços de alguns líderes, entre os quais Macron e Draghi, o debate sobre o futuro da Europa também não foi muito longe. A ideia de seguir o modelo de financiamento do Fundo de Recuperação e Resiliência, contraindo 200 mil milhões de euros de dívida nos mercados financeiros para financiar colectivamente as despesas com a defesa foi afastada pelo holandês Mark Rutte. Macron limitou-se a dizer, no final, que há consenso sobre os objectivos neste domínio, mesmo que falte ainda decidir sobre os instrumentos.

A revisão da política orçamental para financiar a transição verde e a defesa também não gerou consenso, embora os líderes tenham apenas iniciado essa discussão. Os “frugais” continuam a sonhar com o rápido regresso às regras do Pacto de Estabilidade que vigoraram antes da pandemia. Draghi fez algumas contas sobre os gastos necessários para cumprir as metas do clima e aumentar os gastos com a defesa em cerca de 500 mil milhões de euros, num tempo curto, caso a Europa queira cumprir a meta dos 2% do PIB fixada pela NATO. Para concluir que “todas estas questões apontam para a necessidade de reconsiderar todo o aparato regulatório” da União. E continuou: “No PEC, nas ajudas de Estado, nos standards dos produtos agrícolas que podemos ter de importar, no mercado da electricidade”.

“A Europa vive nessa zona cinzenta que não é ainda a guerra, mas que já não é a paz”, escreveu Sylvie Kauffmann no Monde. É esta a nova realidade.

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