Educar para a paz

Na Europa, vivemos um longo período de paz. Ao contrário das gerações mais velhas, que ainda se lembram da guerra, as gerações mais novas naturalizaram a paz. Quando algo se afigura como um dado adquirido, deixamos de lhe dar atenção.

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"A educação para os valores faz-se, antes de tudo o mais, através do exemplo" Adriano Miranda/Arquivo

A educação para a paz assenta no desenvolvimento de valores. Mais do que serem ensinados, importa criar condições para que os valores sejam aprendidos, através de vivências de cidadania democrática.

A paz está para a guerra como a saúde para a doença. Só são valorizadas quando estão ameaçadas. Quando temos saúde, não sentimos o corpo: não sentimos o estômago, não sentimos o coração, não sentimos os pulmões, não sentimos os rins, não sentimos nada. É a doença que nos faz sentir a parte do corpo em que se manifesta e, quando tal acontece, percebemos o valor inestimável da saúde.

Na Europa, vivemos um longo período de paz. Ao contrário das gerações mais velhas, que ainda se lembram da guerra, as gerações mais novas naturalizaram a paz. Quando algo se afigura como um dado adquirido, deixamos de lhe dar atenção. No entanto, tal como a saúde, a paz é valorizada quando há algo que a coloca em causa, como a guerra. Para quem nunca experienciou a guerra, é a sua existência que leva a pensar no valor inestimável da paz e nos valores que a sustentam.

Pensar na paz é pensar em como educar para a paz. E para esta questão, como para muitas outras, as respostas não são simples nem únicas. Educa-se para a paz, tal como se educa para os valores. E, nesta matéria, por mais belos que sejam os discursos, estes não constituem a estratégia mais eficaz para inculcar os valores nas crianças, sobretudo se as ações de quem os profere não forem congruentes com as palavras. O mote do “faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço” tem pouca ou nenhuma eficácia educativa.

A educação para os valores faz-se, antes de tudo o mais, através do exemplo, ou seja, mediante comportamentos consistentes e congruentes com os valores defendidos. Daí que o papel de modelagem dos adultos de referência das crianças, sejam pais, professores ou outros familiares, seja tão relevante. As crianças estão muito atentas às ações dos adultos, sendo perspicazes quando se trata de detetar inconsistências e incoerências que contradigam os valores apregoados.

Não adianta muito, por exemplo, ser um fervoroso defensor da paz, quando se tem constantemente comportamentos agressivos no trânsito, desrespeitando por sistema os outros condutores. O que não quer dizer que, ocasionalmente, os adultos não possam ter atitudes das quais não se orgulhem, pela simples razão de que não são nem têm de ser perfeitos, desde que, na maioria das vezes, consigam dar segurança à criança através da fiabilidade das suas ações.

Mas, para desenvolver os valores, entre os quais a valorização da paz, não basta que a criança seja uma observadora atenta. Os valores não se ensinam; cria-se condições para que se aprendam. E estes só se tornam consistentes se forem desenvolvidos e apropriados por parte das crianças. Isso faz-se através da vivência imersiva numa realidade na qual as crianças desempenhem o papel de sujeitos ativos na construção dos valores através dos quais norteiam a sua ação.

Para este efeito, é fundamental que na escola participem na construção das regras através das quais regem os seus comportamentos, para que as interiorizem e desejem cumprir, não por receio da sanção dos adultos, mas sim porque são as primeiras responsáveis pela criação dessas regras. Claro que este processo, como tudo quanto é interiorizado, é um longo caminho, que se percorre ao longo do tempo, passando por diversas etapas que abrangem, nomeadamente, o incumprimento das regras, a necessidade de as relembrar e, por vezes, de as reformular.

Ao longo deste processo, não é necessário inventar nada que não exista na vida de um grupo de crianças. A matéria-prima para o desenvolvimento de valores humanistas está ao nosso alcance. E está ao nosso alcance todos os dias: nas relações que naturalmente se tecem entre as crianças, com os inevitáveis conflitos e as subsequentes reconciliações. São as relações interpessoais reais que constituem, por excelência, o laboratório onde se ensaia o diálogo e a capacidade de se colocar no lugar do outro, essenciais para desenvolver a gramática da empatia.

A existência de um instrumento na aula onde as crianças, ao longo da semana, possam registar todos estes acontecimentos (Jornal de Parede) e, posteriormente, um momento semanal durante o qual possam dialogar sobre as ocorrências registadas (Assembleia de Turma) é determinante para desenvolver os valores do respeito, da tolerância, da compreensão e da solidariedade, promovendo a capacidade de escuta e o poder de argumentação.

O facto de haver um delay entre o acontecimento e a discussão do mesmo constitui uma oportunidade para desarmadilhar o gatilho da emoção, interrompendo o fenómeno da ação/reação, que retroalimenta a violência. A prática continuada de gestão das emoções faz com que o intervalo entre o desencadeador da emoção e o aparecimento da resposta emocional se torne cada vez mais longo. Desta forma, fomenta-se a avaliação reflexiva, por natureza mais lenta, conquistando tempo para pensar na resposta mais apropriada para lidar com a situação em causa, em vez de o fazermos de forma automática e condicionada, reféns das nossas próprias emoções.

Estas aprendizagens não se fazem apenas no terreno da cognição, mas também no da emoção, mobilizando os sentimentos experienciados durante o processo de crescimento, ao serviço de uma importante aprendizagem que sustenta o desenvolvimento dos valores: aprender a ser. Trabalhar a dimensão do aprender a ser é um papel do qual a escola, enquanto laboratório de relações humanas de proximidade, não pode demitir-se. Educar para a paz é tudo isto e faz-se todos os dias, a todo o momento.


A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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