A febre das conclusões

Os meses de teletrabalho foram os melhores da sua vida nos últimos anos. Os miúdos na escola e ela em casa, sozinha, sem ter sequer de se vestir da cintura para baixo.

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Markus Spiske/Unsplash

Estremunhada na cama sem conseguir levantar-se, talvez tivesse atingido o ponto de desistência. O tal ponto de que já tinha ouvido falar. A cabeça zunia, as ideias confusas, afinal que dia era? Terça-feira, seria? Lavar-se, vestir-se, acordar os filhos, João e Nuno, preparar o pequeno-almoço para todos enquanto os pequenos continuam na cama a fingir que não a ouviram chamá-los e demoram a despachar-se. Tem de os chamar várias vezes, lançando alto na direcção do quarto: “Despachem-se, vamos, já estamos atrasados.” E os queixumes de retorno, vindos do quarto: “Só mais cinco minutos, mãe!”

Desenrascar o pequeno-almoço, igual todos os dias, sem capacidade, gosto ou criatividade para propor outras coisas que não sejam pão com manteiga e leite com chocolate. Os dias repetem-se: seguir para o trabalho depois de deixar os miúdos na escola. O mesmo emprego que detesta há anos, mal pago, com inúmeras humilhações acumuladas vindas do chefe, e o assédio que sofrera até deixar de usar saias — preferiu deixar de fazê-lo para acabar com o nojo de o ver galar-lhe o corpo à descarada sempre que passava pela sua secretária.

E o pior nem era isso, o que lhe custava mesmo era escutar as suas inumeráveis conclusões. Tinha opiniões sobre tudo, até sobre depilação a cera já o tinha ouvido falar. Como se percebesse alguma coisa do assunto. Dizia que a mulher preferia a depilação a laser, que era mais eficaz e barata. Como se alguém lhe tivesse perguntado alguma coisa. Tinha conclusões sobre tudo. Não havia nada no mundo que não soubesse, por isso no dia anterior, cansada de ouvir bitaites diários há tantos anos, saiu-lhe de forma sarcástica: “A febre das conclusões.”

O chefe perguntou-lhe que raio queria dizer com aquilo. Limitou-se a repetir: “A febre das conclusões.” Depois de um mínimo silêncio tenso, o chefe seguiu para o seu gabinete sem pedir mais explicações. Desde ontem, depois deste episódio, que não se sente bem. A cabeça pesa-lhe estranha. E agora ali na cama, já atrasada para levar os miúdos à escola e seguir para o trabalho, pensa em se pudesse ao menos voltar ao teletrabalho, sem ter de ver gente presencialmente.

Os meses de teletrabalho foram os melhores da sua vida nos últimos anos. Os miúdos na escola e ela em casa, sozinha, sem ter sequer de se vestir da cintura para baixo. O despertador tocou novamente, depois de o ter desligado quase uma dezena de vezes. Levantou-se, passou pela porta do quarto dos miúdos: “Acordem, já é tarde.” Seguiu para a casa de banho, continuava a sentir-se estranha. Estaria com febre, doente? Sentada na retrete a urinar, pôs a mão direita sobre a testa fresca como uma alface.

Na cozinha, começou a preparar a comida dos miúdos e voltou a chamar: “Vamos, despachem-se.” Preparou as três canecas de leite com chocolate e a sua de café e barrou as carcaças semi-rijas do dia anterior com manteiga. E do quarto nenhum som, nada. Pensou como os miúdos lhe davam cabo dos nervos. Especialmente de manhã, que não ajudavam com nada. Irritada e exausta como só uma mãe pode entender quando se começa o dia, dirigiu-se ao quarto dos miúdos, abrindo de rompante a porta. Subiu as persianas e olhou para as pequenas camas. Não estava ninguém.

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