Choque entre economia e natureza provoca mau ambiente no interior

Nos últimos 30 anos, o interior de Portugal passou a ter barragens, auto-estradas, pedreiras, centrais eólicas e fotovoltaicas. Os habitantes viram a natureza ser ferida e pouco receberam pelas perdas. A promessa de exploração de lítio é por isso vista com muita desconfiança.

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O lítio é e promete continuar a ser motivo para um dos protestos populares mais significativos das últimas décadas ESTELA SILVA

Enquanto Vladimir Putin ordenava a invasão da Ucrânia, no passado dia 24 de Fevereiro, a advogada Rita Pereira, de 29 anos, entrava numa guerra pessoal contra o lítio, ao entregar na Câmara Municipal de Felgueiras um ofício camarário com as linhas fundadoras do movimento cívico Seixoso-Vieiros contra a Mineração (SVCM).

O objectivo é travar a prospecção e exploração do metal das baterias em 145 quilómetros quadrados (km2) que abrangem os concelhos de Amarante, Celorico de Basto, Fafe, Felgueiras, Guimarães e Mondim de Basto, uma das seis novas áreas na lista para o concurso internacional de lítio, a realizar brevemente. “Queremos lutar nas ruas. Contudo, achamos ainda mais importante actuar de forma incisiva junto das autarquias e dos tribunais”, esclarece a porta-voz, natural da Lixa.

Cada vez mais pequenas associações se juntam às 14 que, em 2020, assinaram um memorando contra o plano nacional de mineração; receiam, sobretudo, a destruição de recursos hídricos, danos na paisagem, poeiras, consequências nefastas para a agricultura e turismo de natureza e o fim do sossego e qualidade de vida no interior.

O lítio é e promete continuar a ser motivo para um dos protestos populares mais significativos das últimas décadas. Tanto o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, como geógrafos especializados afirmam que nada há a temer: para eles, o lítio é fundamental para a descarbonização da mobilidade e para Portugal inaugurar uma indústria promissora, com novas ferramentas industriais a possibilitarem uma extracção com impactes ambientais muito reduzidos. A tutela tem defendido que a actividade de uma mina de lítio não difere da existente nas centenas de pedreiras espalhadas pelo país.

Todavia, em locais como as Beiras ou Trás-os-Montes, poucos acreditam nesses bons augúrios. Não por convicção, mas por experiência própria: centenas de infra-estruturas foram construídas nas últimas décadas sem que as populações locais se tenham sentido compensadas pelos prejuízos ambientais e sociais provocados.

“A barragem alagou as nossas melhores terras e afastou-nos de outras povoações. Recebemos umas indemnizações baixas e não temos qualquer desconto na factura da electricidade”, disse ao PÚBLICO Idalina Silva, 74 anos, comentando as alterações provocadas em Vilarinho de Negrões pela construção da Barragem do Alto Rabagão, e de como essa má experiência a levou a opor-se à extracção de lítio naquela zona.

Às barragens juntam-se minas e pedreiras, fábricas e eucaliptais, turbinas eólicas, centrais de biomassa ou fotovoltaicas que, na maioria dos casos, têm as suas operações de valor acrescentado distantes dos locais de exploração de matérias-primas. Finalmente, o Ministério do Ambiente parece sensível às críticas: prometeu a organização de sessões de esclarecimento e mais dividendos para os municípios envolvidos na potencial indústria de lítio e de baterias para carros eléctricos.

Trinta anos de “derrotas” e “vitórias” dos ambientalistas

Francisco Ferreira, presidente da Associação Ecologista Zero, não tem qualquer dificuldade em recordar projectos económicos e estratégias políticas que feriram a natureza: desde a construção da Barragem do Sabor, em 2004, em que diz ter-se destruído “um grande rio selvagem com habitats únicos e classificados por legislação europeia”, à ameaça do aeroporto do Montijo, “encostado a uma área protegida (Reserva Natural do Estuário do Tejo), uma das dez zonas húmidas mais importantes da Europa e classificada ao abrigo de legislação europeia”.

A decisão da localização do aeroporto viria a ser inviabilizada por oposição de duas autarquias, fazendo uso da legislação em vigor, tendo as associações de ambiente contestado a ausência de uma avaliação ambiental estratégica, entretanto decidida, mas de cariz limitado.

Para João Camargo, dirigente da organização ambientalista Climáximo, as últimas três décadas foram uma catástrofe para o ambiente: “Após alguns ganhos nas décadas de 60 e 70 do século passado, os últimos anos foram de um verdadeiro declínio, pois assistimos a uma procura deliberada e consciente pelo benefício da economia que conduziu à morte de ciclos de nutrientes, de vida nos oceanos, mudanças drásticas no clima, na biodiversidade, enfim, transformações sem paralelo na história da humanidade.”

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Fevereiro de 2017: manifestação contra o furo de prospecção petrolífera em Aljezur MIGUEL A. LOPES

Houve, não obstante, pequenas vitórias dos ambientalistas – como o cancelamento do pedido de prospecção de petróleo ao largo de Aljezur, os mais de 100 projectos PIN do Governo de José Sócrates que nunca avançaram ou a alteração do traçado final da auto-estrada do Sul, em 1998. “O traçado inicialmente previsto cortava locais de grande interesse em termos de conservação da natureza e viria a ser alterado para reduzir impactes”, recorda Francisco Ferreira.

O ambiente é tradicionalmente uma das vítimas mais frágeis das decisões políticas visando o crescimento económico e o eleitoralismo. Ao PÚBLICO, o ministro João Matos Fernandes disse que daqui em diante ambiente e economia terão de caminhar de mãos dadas, um propósito sustentado por um relatório recente da Organização Internacional de Trabalho (OIT), que conclui que a economia verde gerará globalmente 24 milhões de postos de trabalho até 2030, contra apenas seis milhões de empregos perdidos noutros sectores.

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ADRIANO MIRANDA/PUBLICO

No entanto, Francisco Ferreira acredita que tal só será possível “se o caminho for diferente e menos esquizofrénico do que o actual”. Isto, porque a tutela anunciou recentemente o plano de interconexão de gás natural com França. “Portugal é pela descarbonização, mas quer fazer negócio à custa de investimentos ociosos para o clima, investindo em gás natural que a lei do clima diz que deve ser banido até 2040”, comenta o ambientalista. “Mais, numa altura em que se avolumam as intenções de investimento no solar fotovoltaico, uma situação que se considera positiva para que o país alcance a neutralidade climática em 2050, é fundamental prevenir impactes e conflitos, como os que tiveram lugar no passado com a expansão da energia eólica em zonas sensíveis.”

Entre os apoiantes da criação de uma indústria de lítio em Portugal, há quem acredite que a montanha de protestos vai parir um rato. “Faz-me lembrar os protestos contra os aterros sanitários e industriais em Souselas, Bigorne ou Valongo. Fizeram manifestações, cortaram estradas, mas agora temos os aterros e as pessoas vivem bem com isso”, diz o geógrafo José Rio Fernandes, da Universidade do Porto.

“Haverá impacto visual, mas não poluição química, nem perigo para a saúde pública. Quando os populares se aperceberem disso, vão aceitar”, acrescenta.

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