O urso saltimbanco e o dragão equilibrista

Longe vão os tempos em que Nikita Khrutchov, amparado por bóias, se mantinha à tona na piscina de Mao por não saber nadar.


O mundo volta a agitar-se com os devaneios militares de Vladimir Putin nas terras da Ucrânia, ensombrado pela ideia de uma Rússia ofendida e engalanado por uma Rússia sonhada. Enquanto se escrevem milhares de páginas e se enchem os noticiários com o assunto, importa deslocar o prisma de análise para um ator chave neste processo: a China.

Longe vão os tempos em que Nikita Khrutchov​, amparado por bóias, se mantinha à tona na piscina de Mao por não saber nadar. A humilhante ensinadela era a demonstração de desagrado chinês com a liderança moscovita, num período de crescente tensões bilaterais que quase os atirou para uma guerra fratricida. Hoje, pelo contrário, os dois países vivem o seu melhor momento dos últimos 50 anos. O novo alinhamento diplomático tem implícito a defesa das suas “democracias autênticas”, rejeitando os modos de vida e valores ocidentais, particularmente a política externa americana e o alargamento da NATO. No dia 4 de fevereiro, o encontro de Xi Jinping e Vladimir Putin, no início das Olimpíadas de Inverno, reforçou a cooperação bilateral. Uma amizade pessoal que se solidifica, improvável, tendo em conta as diferentes matrizes históricas, culturais e linguísticas.

De facto, estes dois líderes têm um relacionamento pessoal excecional, comparativamente às lideranças chinesas anteriores. Ao que parece, a amizade cimentou-se na cimeira Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC), realizada em Bli, em 2013. Na altura, Xi Jinping até participou no aniversário privado do presidente russo. Os diálogos informais decorreram entre vodka e sanduíches, contando entre si episódios históricos do passado militar dos respetivos progenitores. A partir daqui os encontros bilaterais sucederam-se, a cooperação intensificou-se, alinhando-se as agendas e abriram-se negócios, incluindo o abastecimento de recursos naturais russo à China.

Em 2014, os dois países lançaram o projeto “O Poder da Sibéria”, um gasoduto que fornece gás da região de Yakutia, na Sibéria, para o norte do dragão Chinês. A posterior assinatura entre a empresa russa Gazprom e a Corporação Nacional de Petróleo da China (CNPC) da China, enquadrada no mesmo projeto, visa fornecimento gás gasoduto russo para a China num total anual de 48 mil milhões de metros cúbicos.

A verdade é que as incursões militares russas na Ucrânia não deixam de colocar Pequim numa situação sensível em termos políticos e diplomáticos. O dragão chinês procura manter-se em equilíbrio, entre a parceria estratégica que mantém com Moscovo, os princípios sagrados de não-interferência e integridade territorial, a manutenção de uma imagem internacional positiva na prossecução dos seus objetivos de soft power. Os discursos oficiais apontam para a defesa da paz, não deixando de apontar críticas à NATO e aos Estados Unidos.

Wang Yi, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, mostrou ao seu homólogo russo, Sergei Lavrov, compreensão pelas questões de segurança. A verdade é que Pequim identifica-se fortemente com Moscovo – duas potências imperiais do chamado “mundo não livre”, autoritário, no afastamento dos Estados Unidos das suas áreas de influência estratégica. São motivações de natureza geopolítica e não há dúvida de que Xi Jinping não deixará de patrocinar informalmente Putin. Não o fará pelas vias formais, o que lhe poderia custar uma aplicação alargada de sanções e comprometer os seus desideratos de crescimento económico.

Na verdade, as sanções que a União Europeia e os Estados Unidos pretendem aplicar à Rússia são paliativos, que a janela com Pequim rapidamente atira para o patamar da insignificância. Só com a aplicação de sanções à Rússia e à China, em simultâneo – cenário inverosímil – é que ficaria débil a situação de Putin. Da mesma forma que Moscovo foi o garante no acesso a tecnologia militar na sequência do embargo de armas após a crise de Tiananmen (ainda em vigor), também Pequim assegurará o acesso a muitos bens e serviços barrados pelo dito ocidente. Empresas chinesas da área tecnológica como a Huawei veem aqui um enorme potencial de negócio.

O “casamento de conveniência”, que Wang Yi diz ser estratégico, foi confirmado na histórica assinatura da declaração conjunta, nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim. Os dois países declararam não existir limites para o relacionamento bilateral, nem nenhuma área proibida para a cooperação. Não sendo uma aliança militar, eleva o compromisso para níveis superiores. Resta perguntar se este compromisso deu ao líder russo o suporte necessário para avançar militarmente para a Ucrânia. Pergunta-se se não pode ser uma “troca de favores”, pensando numa futura invasão chinesa de Taiwan, que contaria com o apoio de Moscovo. Os dois países fazem exercícios militares conjuntos, com frequência, uma parte ao abrigo da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Estão a preparar uma interligação entre os sistemas de navegação de satélite Glonass, russo, e o Beidou, chinês. Acima de tudo, Pequim vai tirando ilações da reação do mundo à invasão na Ucrânia, planeando com cautela a sua estratégia de segurança e defesa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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