O julgamento de Cavaleiro Ferreira na Faculdade de Direito de Lisboa pelo MRPP em 1974

Já no uso da palavra, que prolonguei ad nauseam, lá ouvi o burburinho dos militares a chegarem e a entrarem no anfiteatro, para levarem o Professor.

O semanário Nascer do Sol (NS) fez recentemente uma incursão ao que chama Arquivo Histórico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e deteve-se num dos episódios mais provocatórios pouco depois do 25 de Abril de 1974, do qual conta coisas e loisas. É um episódio acerca do qual a minha memória, em muitos aspetos, está fresca, tal a intensidade do acontecido. Nem sempre sabemos a razão por que nos lembramos de certos acontecimentos, mas de outros sabemos. Saio a terreiro porque nesse episódio estiveram envolvidas personagens e registaram-se confrontos político-ideológicos dignos de relevo. E de algum modo paradigmáticos dos caminhos de então.

Morava com outros colegas na Estrada de Benfica e numa tranquila tarde o meu namoro foi interrompido pela campainha frenética que engasgada não parava de chamar. Era o Justino António aflito. Os “émeérrepêpês” tinham apanhado o Professor Cavaleiro Ferreira na faculdade (depois de ter sido saneado) e iam julgá-lo.

Lembrei-me de um alerta, dias antes, do Carlos Brito, para estarmos atentos às provocações do MRPP na Faculdade de Direito. Fui para a faculdade. Aí o espetáculo era algo que se podia situar entre o trágico e o surrealista. À entrada da faculdade um cordão de ativistas do MRRP de maus modos a notificaram-me que não podia entrar, porque o que se estava a passar nada tinha de estudantil, decorria um julgamento popular e gritavam” os pides morrem na rua”. Assim. Tentei entrar e levei uns pontapés. Falei, à parte, com o Justino e combinamos que ele iria ao MFA dar conta do que se passava e para virem a fim de evitar o tal “julgamento popular”. E lá foi o Justino.

Já não sei muito bem qual foi o estratagema que usei para entrar, julgo que foi o de que se propusesse aos participantes deixar-me entrar ou não; talvez pensassem que a maioria iria deixar-me à porta, o que não aconteceu.

O Professor estava a um canto da sala. Tinha sido eu quem se levantou na aula de Direito Penal para propor a expulsão do Professor e consequente saneamento. Ele encarou-me e deve ter pensado o pior.

As intervenções iam no sentido de condenar aquele dignitário do fascismo. Pedi a palavra e o “Tribunal” não ma concedeu. Usei o mesmo esquema – a assembleia era soberana e decidiria se eu podia ou não usar da palavra. Grande confusão. Dada a primeira votação, temeram o que veio a suceder: foi-me concedida a palavra. Para ganhar tempo em relação ao cumprimento da tarefa do Justino, lá fui protelando a intervenção e, já no uso da palavra, que prolonguei ad nauseam, lá ouvi o burburinho dos militares a chegarem e a entrarem no anfiteatro para levarem Cavaleiro Ferreira.

Ao contrário do narrado no NS, nenhum professor se encontrava no anfiteatro, nem um. Nessa altura andavam cheios de medo, quase todos. Quase.

Do lado dos Estudantes Comunistas estávamos dois, o Justino e eu. Não estava mais ninguém da Comissão Pró-Eleições. O “julgamento” era à tarde e não havia aulas. A sala não estava cheia e muitos dos presentes não pertenciam ao MRPP, eram estudantes, alguns voluntários (que tinham feito a tropa e tinham um regime diferente) que estavam a assistir e não alinhavam com aquela loucura, como se viu pelas duas votações.

Omiti propositadamente nomes dos principais juízes e instigadores, muitos deles figuras de proa de Portugal, em vários setores da sociedade dos nossos dias.

O que me move não é qualquer ajuste de contas, antes repor a verdade do sucedido. É o registo histórico do que poderia ter sido a brutal provocação ao novo regime, se, por acaso, os intentos daquela trupe, autodenominada marxista-leninista-maoista, tivessem sido levados até ao fim.

Quem era capaz de proclamar que o 25 de Abril teve como objetivo impedir a revolução proletária que o vento Leste trazia era capaz se perfilar como juiz de um tribunal “popular” cujos juízes eram os mais ativos militantes da Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas ao serviço do Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, o PCTP. O vento Leste foi uma poderosa inspiração que levou muitos deles e delas às cadeirinhas dos vários poderes. Aquele era o tempo e o modo; depois o tempo já era outro e o modo também e tudo se justificou para abandonar os princípios do Livro Vermelho. Os convertidos abraçados ao ímpeto da conversão estão sempre mais próximos do Alto.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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