Coluna militar parada junto de Kiev é “mau planeamento”: “Putin não tem nenhum trunfo escondido”

O que poderá estar a causar uma coluna de veículos militares de 64 quilómetros às portas de Kiev? Poderá não se tratar de uma mudança de táctica, mas antes de problemas logísticos provocados pelo “mau planeamento”. “Não sei se Putin estava bem informado das suas capacidades das Forças Armadas”, diz professor de Relações Internacionais.

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A enorme coluna militar às portas de Kiev EPA/MAXAR TECHNOLOGIES HANDOUT

Há 64 quilómetros de tanques e veículos militares praticamente parados à porta de Kiev. Há quase três dias que assim estão e, de acordo com o Ministério da Defesa britânico, há “muito pouco progresso perceptível”. Especula-se que estejam cerca de 15 mil russos nesses veículos. Alguns estão afastados; outros estão aos pares ou trios, de acordo com as imagens de satélite publicadas pela empresa norte-americana Maxar. Ainda não se sabe bem o que poderá estar a acontecer para se manterem no mesmo sítio há tanto tempo. Os peritos ouvidos pelo PÚBLICO acreditam que não se trata de estratégia, mas de falta de preparação.

As hipóteses avançadas pelo Ministério da Defesa britânico prendem-se com as dificuldades logísticas – falta de combustível, avarias, falta de comida para os soldados. A isso junta-se uma resistência ucraniana descrita como “forte”, que poderá não ter constado nos planos das forças russas. Mas também se abre a hipótese de ser uma paragem para reagrupamento ou mudança de estratégia, para minimizar as perdas. Os norte-americanos abrem ainda a hipótese de a Rússia estar a planear atacar algumas infra-estruturas governamentais antes de tentar um “assalto final” ao local, de acordo com um responsável dos EUA, que quis permanecer anónimo, citado pelo India Today.

Não se sabe ao certo qual era o plano de Putin com esta coluna de veículos militares, mas especula-se que o objectivo final fosse tomar Kiev, que ainda resiste. Outras cidades ucranianas já foram controladas pelas tropas russas, como a cidade portuária de Kherson, uma das maiores cidades a ser tomada.

Para Paulo Baptista Ramos, professor auxiliar convidado de Relações Internacionais na Universidade do Minho, “não parece haver mudança de táctica, antes pelo contrário: é um engarrafamento militar. É causado por mau planeamento, não é assim que se movimentam tropas num teatro de operações”, aponta. E, olhando para os meios de que dispõem, o que salta à vista é que não se trata de tecnologia de ponta, pelo contrário: é “obsoleta e caduca”.

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“A Rússia, em termos militares, estava obsoleta por causa da Guerra Fria. A seguir à invasão da Geórgia, em 2008, perceberam isso e começaram uma restruturação das Forças Armadas, a partir de 2010. Mas essa restruturação custa muito dinheiro é preciso ter muita capacidade de gestão, engenharia, estratégia. E os russos ainda não estão lá. Podem estar na área da ciberguerra, onde desenvolveram grandes capacidades e tornaram-se potência mundial, mas na guerra convencional pelos vistos não. Essa coluna é um exemplo disso”, explica. Se a NATO estivesse envolvida ou a Ucrânia tivesse mais meios, “essa coluna já não existia”.

É possível que Kiev venha a cair, admite o professor. As tropas russas poderão continuar a entrar no país – provavelmente vindas da Bielorrússia, de onde terá chegado esta coluna – e há pouco que a Ucrânia possa fazer para parar a entrada de armas. O conflito pode dar origem a uma “guerra de atrito”, com o objectivo de desgastar das tropas ucranianas.

Este é um dos desfechos possíveis, mas, por enquanto, há algo que se torna claro: “Não há nenhum trunfo na manga do Putin, nenhum duque escondido. Se houvesse, não precisava de ameaça nuclear, logo no segundo dia da guerra. É porque está a correr mal”, afirma. “Não sei se Putin estava bem informado das suas capacidades das Forças Armadas. É a imagem contrária da que ele estava a passar antes.”

Ninguém ganha, todos perdem

Alexandre Guerra, consultor de comunicação formado em Relações Internacionais, é da mesma opinião: “Da parte de Putin houve uma má avaliação ou conhecimento errado do que seria o seu poderio militar efectivo”. Mas há outro factor a pesar na equação: os jovens russos de hoje “têm uma forma muito diferente de encarar as Forças Armadas e o patriotismo” muito diferente dos que combateram nas guerras mundiais.

Estão a ser enviados soldados muito novos, “rapazes com pouco mais de 20 anos que têm outra forma de estar em sociedade”, ilustra. “Jovens que abandonam tanques ou veículos militares, que vão à procura de combustível... São acção ingénuas em ambiente de conflito militar, mas que acabam por corresponder ao comportamento de um jovem de 20 anos que é colocado na frente de batalha, num mundo diferente da Guerra Fria ou da II Guerra Mundial. É um factor que não foi tido em conta pelo Kremlin. Muitos deles já estavam há vários meses junto à fronteira da Ucrânia, o que provoca um cansaço tremendo para jovens que nunca pensariam que se iam encontrar numa situação dessas.”

Sobre a coluna de veículos militares, Alexandre Guerra salienta que ainda pouco se sabe – não se conhecem os planos iniciais de Moscovo nem os ajustes que poderão estar a ser feitos. Mas cada dia que passa é “um dia em que a destruição da Ucrânia se acentua”, independentemente de a coluna avançar para Kiev ou não. E, se a Rússia estiver a preparar um reforço do material bélico nas linhas de combate, isso apenas “acentuará o desnível de forças entre os dois lados” e prolongará o conflito, sem nunca se chegar a uma vitória.

O que é que ainda pode acontecer?

Para além do possível falhanço das estratégias que estão de facto a ser usadas – como o recurso a pára-quedistas — as baixas também são preocupantes. Oficialmente, a Rússia dá conta de apenas 500 baixas. Do outro lado, a Ucrânia diz que já morreram 5000 soldados russos. Ninguém sabe ao certo quantas baixas já se registaram, mas o número é elevado para uma guerra ainda tão curta: “Os EUA, em termos militares, perderam 2000 soldados no Afeganistão em 20 anos. No Iraque, de 2003 a 2011, foram 5000. Os franceses e os ingleses, no Afeganistão, foram centenas. Já morreram mais russos na Ucrânia do que ingleses e franceses no Afeganistão. É colossal nas novas guerras em que não se quer morrer, não se quer apresentar baixas com uma grande preocupação para não baixar a moral”, afirma Paulo Baptista Ramos.

Sobre o que ainda pode acontecer, há mais dúvidas do que certezas. O professor convidado na Universidade do Minho levanta algumas hipóteses, como uma mudança de estratégia, com cercos às principais cidades, “cortando os abastecimentos e acompanhando com bombardeamentos, eventualmente estratégicos”, com aviões bombardeiros a sobrevoar.

O professor sublinha que os russos já estão a lançar mísseis e artilharia sobre as cidades, de forma mais ou menos indiscriminada, “a atingir sítios civis, como escolas, universidades, pavilhões desportivos, e não é por acaso. Muito provavelmente receberam informação de que os militares se estavam a agrupar ali. É natural: o exército ucraniano, quase um exército de milícia, começou a usá-los para fazer concentração das tropas”, explica.

Há também ainda a hipótese de Moscovo usar “armas nucleares tácticas, mais pequenas e de uso limitado”.

As armas estão a chegar à Ucrânia, mas são limitadas. Face a um braço de ferro tão desigual, o que poderá ajudar o país? A ciberguerra, com a ajuda dos EUA, defende Paulo Baptista Ramos. “Espero que os ‘anónimos’, vamos chamar-lhes assim, comecem a empastelar as comunicações militares russas, para eles ficarem surdos, mudos, cegos. Precisam dos três C essenciais: comando, controlo, comunicação. Quebrar as cadeias de comando é decisivo. A Ucrânia também tem capacidades nessa área, mas espero que o cibercomando americano esteja estar a dar, ainda que de forma encoberta, ajuda nesse campo.”

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