Os diferentes universos que as pessoas habitam

A escola pública é um microcosmos, com alunos de diferentes contextos socioculturais e económicos, que a todos acolhe, sem exceção, como os alunos com necessidades educativas especiais - que o ensino privado maioritariamente rejeita, com raras exceções.

É comum, no discurso de vários políticos, ser dada como verdade universalmente válida uma suposta superioridade do ensino privado comparativamente com o ensino público. Chega a ser afirmado peremptoriamente que deveriam ser tomadas medidas para melhorar o ensino público de forma a estreitar a lacuna existente entre os dois tipos de ensino.

Quais seriam essas medidas? Não especificam com clareza. Ao coro de críticas não se seguem propostas de soluções correspondentes, talvez porque tal juízo de valor é totalmente desprovido de sentido.

Conheço bem, como professora, os dois tipos de ensino e não posso discordar mais desta hierarquização.

A verdade é que não há qualquer relação de superioridade ou inferioridade na transmissão de conhecimentos entre os estabelecimentos de ensino públicos e privados. Aquilo que na verdade existe são realidades diversas em que as escolas estão inseridas: a sua localização, a estabilidade do corpo docente os diferentes contextos socioculturais e económicos de que os alunos provêm, os recursos informáticos de que dispõem, as condições físicas da própria escola, entre outros factores. Estes condicionalismos irão também criar uma disparidade visível entre as várias escolas públicas e não podem ser escamoteados, já que irão ditar todo um procedimento didático e pedagógico: estratégias, definições de objectivos, gestão curricular, projetos a desenvolver, etc. Os vários departamentos disciplinares e as direções movimentam-se em contextos distintos, com as vantagens e desvantagens inerentes a cada um deles, mas sempre priorizando o bem estar dos alunos e a sua evolução na aprendizagem.

Lecionei durante alguns anos num estabelecimento de ensino de um bairro operário de Lisboa e verifiquei que os alunos se sentiam verdadeiramente bem na sua escola, sendo que muitos deles preferiam nela permanecer e ali estudar fora das horas lectivas, já que não dispunham em casa de um espaço só seu. Admirei a dedicação do corpo docente, que, felizmente, era maioritariamente estável (ao contrário de tantos profissionais que veem a sua efetivação adiada ad eternum) e conseguia proporcionar um espaço acolhedor de aprendizagem e encontro aos seus alunos, que viam na escola a sua casa de eleição.

Muito se teoriza e se pontifica sobre o ensino público e as suas pretensas falhas (normalmente por quem nunca ensinou) falando-se até de cheques-ensino para dar acesso aos menos privilegiados a boas escolas privadas. Recordo-me sempre de uma crónica de um reputado jornalista e escritor, que leio com enorme prazer nas duas vertentes, que referiu ter tido os seus dissabores na adolescência, já que frequentou um colégio caro, onde os pais tinham um desconto significativo, o que o obrigava a conviver maioritariamente com alunos de famílias endinheiradas, sendo que a sua tinha um elevado nível intelectual, mas não económico...

A escola pública, pelo contrário, é um microcosmo, com alunos de diferentes contextos socioculturais e económicos.

O ensino público é, acima de tudo, o lugar que a todos acolhe, todos sem exceção, como os alunos com necessidades educativas especiais, que o ensino privado maioritariamente rejeita, com raras exceções.

Este é um traço distintivo da escola pública que a torna tão mais humana do que a maioria das escolas privadas: a prática da educação para a inclusão, o facto de acolher, apesar dos condicionalismos que possa enfrentar, todos os alunos com características diferentes mais ou menos acentuadas. Têm até prioridade aqueles que evidenciam diferenças mais notórias e veem frequentemente a sua matrícula no ensino privado liminarmente recusada.

Há pais destes alunos com necessidades educativas especiais que tencionavam, no primeiro ano de escolaridade dos seus filhos, matriculá-los em colégios de renome por todos elogiados. Não anteviram, no entanto, a decepção e a angústia que iriam sentir, logo que a diferença dos seus filhos foi mencionada, perante a transformação de sorrisos acolhedores em reserva distante, as vagas que se eclipsaram, as portas que energicamente se fecharam, os diretores que deixaram de estar disponíveis.

Todos nós somos diferentes, temos capacidades e dificuldades diversas, que, se não forem devidamente abordadas, poderão erguer barreiras à nossa evolução.

Na escola pública, pelo contrário, todos os alunos são bem vindos, num espírito de educação para a inclusão. A resposta pode não ser ainda a ideal, mas existem departamentos dedicados especificamente ao ensino inclusivo, cujos profissionais apostam nesta vertente da educação, proporcionando acompanhamento ao longo do ano, aulas de apoio semanais e seguimento por psicólogos. Estes últimos oferecem a sua ajuda a todos os alunos que dela necessitem, sejam eles crianças ou adolescentes, com diferenças evidentes ou sem elas.

São respostas perfeitas? Ainda não. Há lacunas a preencher, mas há também um esforço notório para que ninguém fique fora da escola pública. Não há portas fechadas.

O extenso rol de críticas ao ensino público centra-se unicamente no saber pretensamente avaliado pelos rankings (nada mais falso), ignorando completamente a vertente humana, as distintas necessidades afetivas e materiais dos diversos alunos a que a escola pública se empenha em dar resposta, a sensibilidade perante, parafraseando George Orwell, os diferentes universos que as pessoas habitam.

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