“Em cada um de nós vive uma memória genética da guerra”: importantes figuras da cultura russa pedem a paz

Actores, dramaturgos e directores de teatros estatais como o Bolshoi apelam ao fim da guerra e outros agentes culturais continuam a protestar internamente contra a invasão, cancelando exposições ou fechando museus. Até Gérard Depardieu, cuja proximidade com o Presidente russo é conhecida, já pediu um cessar-fogo.

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No passado, Vladimir Urin, o director do Teatro Bolshoi, já apoiou as aspirações de Vladimir Putin na Ucrânia, mas agora pede a paz MAXIM SHEMETOV/reuters

Um pouco por todo o mundo, a comunidade artística manifesta o seu repúdio pela invasão da Ucrânia ordenada por Vladimir Putin. E se uns optam, apenas, por pedir a paz, outros protestam abertamente contra o Presidente da Federação Russa, que responsabilizam pela guerra, agitando as ruas, os jornais e, sobretudo, as redes sociais.

Enquanto músicos e maestros que são próximos de Putin vão vendo canceladas as suas participações em concertos em várias salas na Europa e nos Estados Unidos, na Rússia um grupo de 17 agentes culturais escreveu um breve manifesto que pede o fim do conflito. Deste grupo fazem parte figuras tão destacadas como Vladimir Urin, director do Teatro Bolshoi, instituição de referência da cultura russa, o violonista Vladimir Spivakov, um dos mais aclamados da actualidade, e Valery Fokin, dramaturgo e director artístico do Teatro Alexandrinsky, de São Petersburgo.

Neste documento de dois parágrafos citado pelo diário espanhol ABC e pelo site Opera Wire, especializado em notícias da música clássica, os artistas evocam os seus pais e avós que combateram na Segunda Guerra Mundial e defendem que, acima de tudo, a vida é o valor a preservar. “Em cada um de nós vive uma memória genética da guerra. Não queremos uma nova guerra, não queremos que as pessoas morram”, escrevem. “O século XX trouxe muita dor e sofrimento à humanidade. Queremos acreditar que o século XXI se tornará um século de esperança, abertura, diálogo, um século de diálogo, de amor, de compaixão e de misericórdia. Apelamos a todos os lados do conflito que ponham um fim aos confrontos e se sentem à mesa das negociações. Apelamos à preservação do valor mais alto: a vida humana.”

Entre os signatários estão ainda personalidades ligadas ao teatro e/ou cinema, algumas delas já condecoradas pelo governo russo, como Oleg Basilashvili, Nina Usatova, Evgeny Mironov e Maria Revyakina. Foi no Facebook desta encenadora, que até ano passado dirigiu o Teatro Estatal das Nações, em Moscovo, que o breve manifesto pela paz começou por ser publicado.

2022 vs. 2014

O facto de o director do Bolshoi ser um dos 17 signatários desta carta é particularmente significativo, já que Vladimir Urin esteve entre os artistas e directores de teatros que em 2014 assinaram uma carta aberta apoiando a política de Putin para a Ucrânia e, em particular, para a Crimeia. A carta foi divulgada pelo Ministério da Cultura russo a 12 de Março de 2014, dias antes de Moscovo anexar esta península ucraniana do Mar Negro.

É precisamente a lista de signatários dessa carta que agora, face à invasão de todo o país pelas tropas russas, está a ser usada por vários teatros e salas de concertos europeus e norte-americanos como justificação para cancelar compromissos estabelecidos com artistas pró-Putin.

O caso mais notório é o de Valéry Gergiev, que na segunda-feira se viu afastado do cargo de maestro principal da Filarmónica de Munique e da direcção musical da ópera A Dama de Espadas, de Tchaikovski, que até dia 15 deveria assegurar no Scala, o prestigiado teatro de Milão. Gergiev, amigo de Putin, recusou-se a condenar publicamente a invasão da Ucrânia.

Com cancelamentos na agenda (um recital na Dinamarca e outro na Alemanha, por exemplo) está também a soprano Anna Netrebko que, ao contrário de Gergiev, cedeu à pressão para se pronunciar sobre a invasão. A cantora lírica, uma das grandes estrelas do meio operático, falou, no entanto, dirigindo as críticas aos que a forçaram a exprimir uma opinião, e não ao Presidente russo, como muitos desejariam.

“Em primeiro lugar, sou contra esta guerra. Sou russa e amo o meu país, mas tenho muitos amigos na Ucrânia e a dor e o sofrimento actuais partem-me o coração. Quero que esta guerra acabe e que as pessoas possam viver em paz. É isso que espero e é para isso que rezo”, escreveu Netrebeko na sua conta do Instagram no domingo, acrescentando em seguida: “Não é justo forçar artistas ou qualquer outra personalidade a expressar as suas opiniões políticas em público e a denunciar o seu país de origem. [Falar ou não] deve ser uma escolha livre. Eu não sou uma figura política. Não sou uma especialista em política. Sou uma artista e meu objectivo é unir para além das divergências políticas”, continuou a soprano próxima de Putin, que no ano passado, e segundo o jornal francês Le Figaro, celebrou os seus 50 anos no Kremlin.

Ao que tudo indica, esta tomada de posição de Anna Netrebeko não convenceu os directores de teatros e salas de concerto ocidentais onde habitualmente se apresenta, o que levou a cantora que se tem notabilizado na interpretação do reportório de Verdi, Wagner, Strauss e Puccini a anunciar, na terça-feira, a suspensão de toda a actividade “até nova ordem”.

Mas se há quem, como Anna Netrebeko, esteja a ser afastado de cargos e compromissos no estrangeiro por apoiar Putin, também há quem, internamente, abdique dos seus para o contestar.

Do naipe dos que condenam veementemente a invasão e já renunciaram a cargos e convites fazem parte o francês Laurent Hilaire, antigo bailarino-estrela da Ópera de Paris, que deixou a direcção da companhia de bailado do Teatro Stanislavsky, em Moscovo, e o curador do pavilhão russo na Bienal de Veneza, Raimundas Malašauskas, bem como os dois artistas que deveriam representar o país já a partir de 23 de Abril, Alexandra Sukhareva e Kirill Savchenkov.

“Não há lugar para a arte quando estão a morrer civis sob o fogo de mísseis, quando os cidadãos da Ucrânia estão escondidos em abrigos, quando os opositores russos estão a ser silenciados”, escreveram Sukhareva e Savchenkov nas suas contas nas redes sociais Facebook e Instagram.

Raimundas Malašauskas, o curador, justificou a decisão de se retirar do projecto fazendo referência ao seu passado: “Nasci e fui educado na Lituânia quando ainda fazia parte da União Soviética. Vivi a dissolução da União Soviética em 1989 e testemunhei o desenvolvimento do meu país desde então. A ideia de voltar a viver sob um império russo ou qualquer outro é simplesmente intolerável”, disse, citado pelo jornal El País.

Apesar de Viacheslav Volodin, presidente da Duma, a câmara baixa do Parlamento russo, ter feito saber na semana passada que quaisquer manifestações contra a guerra seriam consideradas “traições ao povo”, muitos são os agentes e as instituições culturais que puseram as suas actividades em suspenso em protesto contra a invasão.

Elena Kovalskaya, directora de um dos teatros de Moscovo financiados pelo Estado, o Meyerhold, demitiu-se antes mesmo da ameaça do presidente da Duma. Pouco depois dos primeiros ataques à Ucrânia escreveu na sua página no Facebook: “Não se pode trabalhar para um assassino e receber dele um salário.”

Também o Garage, importante museu de arte contemporânea da capital russa, anunciou em comunicado que manterá as portas fechadas até que “a tragédia política e humana em curso na Ucrânia termine”. No novíssimo centro cultural GES-2, foi o artista islandês Ragnar Kjartansson quem decidiu cancelar a exposição que para ali tinha programada, classificando a Rússia como um “Estado fascista em toda a linha”.

Depardieu contra a guerra

Fora da Rússia, talvez o mais surpreendente apelo ao fim do conflito na esfera da cultura tenha sido feito esta terça-feira pelo actor francês Gérard Depardieu, um reconhecido apoiante de Putin.

Numa entrevista à agência de notícias France-Presse, Depardieu pediu um cessar-fogo e um regresso à via diplomática. “A Rússia e a Ucrânia sempre foram países irmãos. Sou contra esta guerra fratricida. Digo: ‘Parem as armas e negoceiem.’”

Para sublinhar a surpresa perante estas declarações, o jornal The New York Times lembra que, em Fevereiro, quando a tensão entre a Rússia e a Ucrânia parecia crescer a cada dia, o actor a quem Putin concedeu a cidadania russa chegou mesmo a ir à televisão francesa com um pedido: “Deixem o Vladimir em paz.”

Depardieu está, desde 2015, na lista de pessoas do meio cultural que podem representar uma ameaça à segurança da Ucrânia. Kiev colocou-o lá depois de, em 2014, o actor se ter referido ao país como sendo parte da Rússia.

Escritores unidos

Sem causar surpresa, ao contrário das declarações do actor francês, o PEN, clube internacional que promove a literatura e a liberdade de expressão, tinha já divulgado no domingo uma carta em que mais de mil escritores em todo o mundo mostravam a sua solidariedade para com o povo ucraniano, condenando a invasão russa e pedindo um cessar-fogo imediato.

“Estamos unidos na condenação de uma guerra sem sentido, desencadeada pela recusa do Presidente Putin em aceitar o direito do povo ucraniano a decidir as suas aliança e história futuras sem a interferência de Moscovo”, pode ler-se na carta assinada por Svetlana Alexievich, Orhan Pamuk, Maria Ressa, Olga Tokarczuk, Burhan Sönmez, Margaret Atwood, Salman Rushdie, Jonathan Franzen, Benjamin Moser, Joyce Carol Oates, Paul Auster ou Colm Toibin.

“Todos os indivíduos têm direito à paz, à liberdade de expressão e de reunião. A guerra de Putin é um ataque à democracia e à liberdade não apenas na Ucrânia, mas em todo o mundo”, acrescenta o texto breve, concluindo que a paz tem de prevalecer. “Não pode haver uma Europa livre e segura sem uma Ucrânia independente.”

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