A vacina do supermercado

Enquanto por cá, nos Estados Unidos, se discute a necessidade/viabilidade de uma quarta dose, consegui facilmente marcar a minha terceira. Aqui, não vi muitas diferenças perante o sistema português. Foi só aí. Pedindo para o local mais próximo, a convocatória indicou-me uma farmácia. Mas, claro, americana.

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Gregorio Cunha

Ponto prévio: sou maior e vacinado. E quis o destino pandémico que haveria de completar o ciclo vacinal contra o SARS-CoV-2 na Califórnia. Seria uma experiência diferente das doses portuguesas? Não o esperava, confesso. Mas vi um exercício interessante naquilo que podemos chamar “trivialização da ciência”.

Enquanto por cá, nos Estados Unidos, se discute a necessidade/viabilidade de uma quarta dose, consegui facilmente marcar a minha terceira. Aqui, não vi muitas diferenças perante o sistema português. Foi só aí. Pedindo para o local mais próximo, a convocatória indicou-me uma farmácia. Mas, claro, americana. E portanto, como tantas outras, esta encontra-se convenientemente localizada dentro de um dos supermercados da minha cidade. Eis o episódio em três actos. Primeiro, esperei sossegadamente numa zona de espera, que partilhava funções com o corredor dos lacticínios. Fui, depois, simpaticamente inoculado por uma enfermeira dentro de uma sala minúscula. E por fim, ao regressar para o recobro junto dos iogurtes, pensei em como gastar o vale de desconto do supermercado, brinde cívico pela pica prévia.

Se pensei que isto foi tão diferente da logística “almirantada ”em Portugal? Sim, é claro que pensei em tudo o que separa os EUA de Portugal. Mas não foi isso o que retive. Pensei em como uma tecnologia de ponta das ciências médicas chegou a ser administrada no espaço mais trivial da urbanidade social. Não menosprezando a importância do carrinho de compras no nosso dia-a-dia, senti-me orgulhoso em fazer parte da comunidade científica que proporcionou este milagre terreno. Milagre como aquele que, ao que tudo indica, curou recentemente uma paciente com HIV. E, principalmente, porque esta vacina é o culminar de décadas de conhecimento acumulado e maturado, em grande parte a partir da investigação numa cura para a SIDA.

Da mesma forma que acharia curioso lançar astronautas de uma lavandaria, estranhou-me o pensamento de ver algo tão tecnologicamente complexo ser reduzido a um serviço de conveniência. A trivialização da ciência não é necessariamente má. Aproxima aquilo que muitas vezes são realidades desconexas, permitindo que todos nós, como sociedade, possamos regular as nossas vidas com conforto e segurança. Mas pode ser um desígnio que conduz à desvalorização da própria ciência, que vai para além dos surtos negacionistas. Esta trivialidade emerge com uma diminuição da importância do conteúdo, em troca de uma valorização da facilidade utilitária da ciência. E não se resume à dificuldade dos políticos e dos media em comunicar ciência. É que ao repetidamente resumi-la numa educação que avalia definições em vez do raciocino e compreensão lógica, impulsionamos uma banalização da própria comunicação científica, que não ficará apenas nesta geração.

Tudo isto para dizer que é importante que a vacina chegue ao supermercado. Mas que se valorize o melhor que a ciência tem. Falemos da perseverança e paciência com que conquistaram estas maravilhas. Valorizemos que só chegamos onde estamos hoje porque há cada vez mais. Expliquemos como é urgente investir neles. E falemos, sobretudo, como é difícil sê-lo. Não pela falta de glamour, mas pela falta de compreensão. É que para preencher um rodapé do noticiário, eles tiveram de suar muito.

Valorizemos os cientistas. Não fujamos deles.

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