É um doente? “Não, sou uma pessoa”

A discriminação por doença tem impacto no estado emocional e no bem-estar de quem sofre com uma doença e ninguém duvide de que essa discriminação conduz à rejeição social e à violência, bem como à diminuição do acesso à educação, habitação ou emprego.

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Rui Gaudencio/Arquivo

– Farmácia hospitalar do hospital... Bom dia.

– Estou? Olá, bom dia! O meu nome é João da Silva, fiz um transplante renal aí no hospital e estou a ligar por causa da alteração de uma medicação.

– Diz-me o seu número de utente, por favor?

– Claro, é o 197...

– Aguarde só um momento, por favor, senhor João Silva, vou passar à farmacêutica.

Cerca de 15 minutos depois, quando os meus ouvidos estavam prestes a começar a sangrar por causa de uma música pavorosa que aumentou para o dobro a minha percepção do tempo de espera, surgiu, muito apressada, outra voz:

– Estou, sim? É um doente?

– Err… bom dia. Não, sou uma pessoa…

– Mas é um doente?

– Não, sou uma pessoa.

– É uma pessoa doente?

– Já lhe disse que sou uma pessoa.

– Olha-me este… Mas então o que quer?

– Minha cara doutora farmacêutica, as pessoas padecem de doenças, não são doentes, a doença não define ninguém.

– Está bem, está bem, mas era para quê?

– Estou a ligar por causa da alteração de uma medicação, o meu nome é João da Silva e o número…

– Isso não é comigo, vou passar à minha colega.

(Interrupção, essa belíssima forma de desprezo)

Oiço um ruído forte, provavelmente o telefone a ser pousado numa mesa. Depois, ruído de fundo indefinido. Desta vez, não há música. Dou graças por isso e penso que o hospital devia procurar alguém para encontrar uma solução para melhorar a experiência de quem aguarda para ser atendido. Subitamente, um murmúrio. Ouve-se mal e esmago o telemóvel contra a orelha na esperança de amplificar o som. Resulta.

– Ó A., atende aqui este doente que diz que não é doente. (Risos)

– O quê?

– Está aqui um doente a ligar que diz que não é doente, que é uma pessoa. (Mais risos)

Uma nova farmacêutica tomou conta da ocorrência. Apresentou-se, cumprimentou-me e tratou-me pelo meu nome. Não sou uma prima-dona, mas prefiro assim. O assunto ficou resolvido em menos de um minuto.

Esta situação passou-se hoje, 23 de Fevereiro de 2022.

O Artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe o seguinte: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. (…)”

Ora, no supramencionado “qualquer outra situação” cabe o estado de saúde. Quase todos os dias ouvimos condenações (e bem, nunca é de mais fazê-lo) à discriminação por raça, etnia, nacionalidade, religião, convicções políticas e ideológicas, idade, género, identidade ou orientação sexual. Pouco se condena, publicamente, pelo menos, a discriminação por doença. É certo que o tema veio algumas vezes à tona nos últimos dois anos em virtude da pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2. E se veio à tona foi porque, estou em crer, tudo o que dizia respeito à pandemia tinha (ainda tem?) tempo de antena ilimitado.

Mas há outras doenças que já cá estavam antes da covid-19. E que por cá continuarão quando a pandemia desaparecer. E os portadores dessas doenças – como o cancro ou a insuficiência renal, para referir os exemplos que melhor conheço – continuarão a ser discriminados. Não falo de cor, conheço a realidade. Que ninguém tenha a coragem de virar a cara: a discriminação por doença tem impacto no estado emocional e no bem-estar de quem sofre com uma doença e ninguém duvide de que essa discriminação conduz à rejeição social e à violência, bem como à diminuição do acesso à educação, habitação ou emprego. E na discriminação cabe, que ninguém disso duvide, ser tratado por “doente”. Uma condição de doença não define ninguém, ponto.

Recentemente, num congresso da Liga Portuguesa Contra o Cancro, referi que sinto alguma indignação quando vejo a designação “transporte de doentes não urgentes” inscrita em ambulâncias. Num veículo onde se lê tal coisa, uma pessoa que saia de lá de dentro, das duas uma: ou é bombeiro, e esses são fáceis de identificar, pois estão fardados, ou, é imediatamente catalogado como doente. Ainda por cima “não urgente”. A maioria dos que me ouviam, entendeu a descrição como uma anedota. A gargalhada foi (quase) geral. Percebo-os, a situação é anedótica, mas na verdade não tem graça nenhuma.

Uma pessoa é uma pessoa, doente ou não. É preciso cuidado com as palavras. Sobretudo com o eco que provocam. Há pessoas que podem sentir-se doentes ou mais doentes ou inúteis ou vítimas e outras coisas igualmente más por serem assim identificados – isso mesmo foi-me confirmado por diversos psicólogos que consultei. Todos sabemos que as palavras que nos dizem e que dizemos a nós próprios podem dar-nos coragem e alento para lidar com as dificuldades, ajudando a organizar o caos dos nossos pensamentos, explicando quem somos, alimentando a alma e organizando e expandindo o nosso mundo. Palavras de conforto administradas no momento certo (e também no errado) são uma terapia tão antiga quanto eficaz. Mas as palavras também podem ser pauladas na alma que nos atiram para um poço sem fundo.

O termo “doente” foi, felizmente, há já algum tempo substituído formalmente nos serviços de saúde por um bastante menos agressivo “utente”. Formalmente substituído, reforço. Na prática, uma pessoa que está doente ainda é tratada, na maioria das vezes, como “doente”.

Mas nós não somos as nossas palavras nem as dos outros, dirão. Certo que não. Mas teremos sempre consciência disso? Saberemos sempre lidar com todas as palavras? Mesmo aquelas que, apesar da nossa vontade de as ignorar, permanecem a vaguear na sombra do nosso inconsciente, sussurrando-nos, atormentando-nos, espicaçando-nos, assustando-nos, definindo-nos?

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.”
José Saramago, Ensaio sobre a cegueira

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