Ser emigrante português é ser cidadão de 10.ª classe e deixa muitos democraticamente apátridas
Aproximadamente 44 mil residentes elegem cada deputado, mas são precisos 650 mil emigrantes para conseguir o mesmo
A controvérsia sobre o voto da emigração que foi anulado e levou à remarcação das eleições nos círculos europeus, ofusca uma muito maior afronta à cidadania dos emigrantes consagrada na lei eleitoral: os seus votos contam apenas para 4 dos 230 deputados da Assembleia da República.
Segundo o Relatório da Emigração de 2020 no Portal das Comunidades Portuguesas, em 2019 mais de 2,6 milhões de cidadãos portugueses nascidos em Portugal encontravam-se a viver no estrangeiro − números que não incluem os cidadãos portugueses filhos desses 2,6 milhões (os chamados luso-descendentes). Portanto, os cerca de 10 milhões cidadãos residentes em Portugal elegem 226 deputados, enquanto os 2,6 milhões de cidadãos residentes no estrangeiro elegem apenas quatro. Aproximadamente 44 mil residentes elegem cada deputado, mas são precisos 650 mil emigrantes para conseguir o mesmo. Isto é, em termos de representatividade democrática, um cidadão emigrante vale 7% de um cidadão residente. Para caracterizar esta discrepância na representatividade de pessoas que são todas supostamente cidadãs da mesma república, o epíteto cidadão de 2.ª não chega, mais correto seria dizer que os emigrantes são cidadãos de 10.ª classe.
É interessante notar tantos artigos em Portugal sobre injustiças nas democracias dos outros, mas tão pouco debate sobre este tratamento tão discriminatório de concidadãos na nossa própria democracia. Quando tento abordar este tema oiço várias justificações que penso valer a pena discutir. Num extremo, há quem diga que os emigrantes nem se quer deviam ter deputado nenhum. É espantoso, mas infelizmente comum, que haja quem abertamente defenda que se deve retirar a cidadania a concidadãos por estarem a residir e trabalhar fora de Portugal em determinado momento. É importante notar que não é normal que tal aconteça em democracias ocidentais. Por exemplo, apesar dos problemas eleitorais que os media portugueses adoram discutir, um cidadão americano não perde qualquer direito de representatividade democrática por viver noutro país por qualquer período de tempo − devo dizer que tenho dupla cidadania, americana e portuguesa.
Uma justificação menos extrema tem a ver com o conceito de representação material no processo legislativo. Deste ponto de vista, os emigrantes, por não viverem em Portugal, são vistos como cidadãos não vinculados às leis que o Parlamento delibera. Isto é, os emigrantes são vistos como cidadãos apenas simbolicamente – e não materialmente – ligados à república. Daí a sua representatividade dever ser apenas simbólica. Nesta perspetiva, os emigrantes são como aqueles estrangeiros que gostam da seleção portuguesa de futebol, mas não “arriscam a pele” em Portugal − não têm “skin in the game” para usar a expressão de que Nassim Nicholas Taleb tanto gosta.
Esta visão do emigrante eternamente desterrado – e daí desacoplado materialmente da república − está obviamente ultrapassada no mundo global do século XXI, especialmente para emigrantes na União Europeia, nos países lusófonos e até nos parceiros atlânticos. Em meados do século XX talvez ainda fizesse sentido pensar que os emigrantes iam de barco para portos distantes dos quais nunca mais regressavam. Mas não é isso que se passa hoje. Os emigrantes, que pertencem a todas as áreas e níveis de educação, vão e vêm, têm em Portugal filhos, pais, família, propriedade, investimentos, produção intelectual e criativa, etc. Grande parte deles estão tudo menos desacoplados da república.
Só com uma visão muito paroquial se pode pensar que os cidadãos emigrantes não estão materialmente envolvidos no país e que devem ser excluídos ou apenas incluídos simbolicamente. Permitam-me partilhar um pouco mais da vida pessoal apenas para exemplificar o tipo de relações bidirecionais, concretas comuns a muitos outros emigrantes. Sou professor universitário e cientista há 30 anos nos EUA. Mas faço contribuições materiais e intelectuais diretas para Portugal diariamente e, vice-versa, é óbvio que as leis deliberadas pelo parlamento me vinculam como cidadão. Os meus filhos, nascidos e crescidos nos EUA, decidiram viver, e contribuir, em Portugal. Porque é que o meu voto deve contar apenas como 7% do voto de qualquer outro cidadão que tenha contribuído materialmente, intelectualmente e geracionalmente para Portugal? Noto que os EUA não retiram aos meus filhos o direito de voto a 100% para qualquer eleição no círculo nacional em que estão registados por estarem a viver em Portugal (e terem dupla cidadania). E porque haveriam de retirar? Contribuímos para ambos os países a todos os níveis, incluindo em patriotismo.
Uma outra justificação, ou receio, é que, dado o elevado número de emigrantes, se estes tivessem a mesma representatividade, Portugal poderia ser governado “por telecomando” por quem não vive no país. Pelo que escrevi acima, é claro que pelo menos grande parte está materialmente envolvida, com muita “skin in the game” em Portugal. É perfeitamente razoável que a república institua critérios para que a cidadania seja mantida − por exemplo, os cidadãos americanos têm que pagar impostos aos EUA onde quer que residam, havendo acordos bilaterais com grande parte dos países para evitar dupla taxação. O que não é razoável é que a cidadania seja retirada para os simbólicos 7%. Até porque a experiência de 2,6 milhões de emigrantes deveria ser valorizada na deliberação democrática. Afinal, quem melhor do que eles para saber porque tiveram que sair do país? Ou quais os mecanismos que permitem fazer carreiras produtivas noutros lugares? Pode Portugal continuar a dar-se ao luxo de ignorar esse feedback político? Quem tem medo dele? Talvez um pouco mais de “telecomando da emigração” no poder ajude a desenvolver um país em que os jovens não tenham que emigrar mais.
É importante também ter em atenção que grande parte dos emigrantes portugueses não tem outra nacionalidade. Quando Portugal lhes retira a sua representatividade, reduzindo-a a 7% dos outros cidadãos, a grande maioria não tem representatividade eleitoral noutro país. Ficam assim democraticamente apátridas. Essa situação – na qual estive durante mais de 20 anos − é uma afronta aos direitos de cidadania, e não deveria ser constitucional. Não me admira que a maioria dos emigrantes não vote e ache esta última controvérsia hipócrita e apenas usada para jogo partidário. Aliás, dada tamanha discriminação, advogo um movimento de desobediência civil. Sugiro que é do interesse democrático que os emigrantes se mantenham registados em círculos eleitorais nacionais em vez dos círculos de emigração onde residem. Bem como organizarem-se em partidos com representação parlamentar que advoguem pelo fim desta discriminação.
Ignorar a cidadania dos que tiveram que sair por falta de oportunidade estará porventura enraizada num país que no fundo ainda age como metrópole de uma Républica imperial, com uma noção de nacionalidade desatualizada. São tiques de superioridade difíceis de ser reconhecidos por um regime que imagina que exorcizou os fantasmas do antigo regime. Mas quem como eu nasceu oficialmente “branco de segunda” em Angola, está farto de ser tratado como cidadão de décima classe num país para o qual já tanto contribuiu.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico