O livro, um maratonista com pulmão sem fim

Talvez o incremento de posições extremadas a que assistimos nos últimos anos nas mais diversas áreas da sociedade, assim como a falta generalizada de meio-termo e de tolerância se possa explicar, em parte, com a falta de leitura.

Foto
Livraria Sá da Costa jose sarmento matos/Arquivo

O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados.

Sou um orgulhoso proprietário de um exemplar da 1.ª edição de O Homem e o Livro (1941) — Preto sobre Branco, no original, publicado em russo em 1932 —, um dos livros mais traduzidos e editados de Mihail Iline, pseudónimo do engenheiro soviético Ilya Yakovlevich Marshak (1896-1953), inicialmente escrito com a nobre intenção de instruir crianças e jovens sobre o livro e a história dos livros. Em Portugal, esta obra foi editada pela Biblioteca Cosmos, criada em 1941 sob a direcção de Bento Jesus Caraça, um matemático português, professor universitário, resistente antifascista e fervoroso comunista, com o objectivo de promover a divulgação cultural, formar a população menos instruída e estimular os jovens para diversos temas que o Estado procurava manter ocultos. Homenageio o propósito de Jesus Carraça contra a perniciosa intenção de esconder informação, citando de cor um aforismo de autor desconhecido: “A leitura é o alimento do espírito: quando sadio, gera, e anima a vitalidade científica; quando corrupto, envenena o coração.”

Foto
DR

Comprei o meu exemplar de O Homem e o Livro em Outubro passado, por apenas dois euros, na centenária Livraria Sá da Costa — fundada a 10 de Junho de 1913 como Livraria Augusto Sá da Costa & Can —, situada no n.º 100 da Rua Garrett, no Chiado, um dos maiores alfarrabistas nacionais. Com 19,5 x 13 cm e apenas 120 páginas a comporem pequena lombada de 1 cm, o livro de Iline passava totalmente despercebido entre os mais de 50 mil títulos espalhados pelas estantes sem fim da Livraria Sá da Costa. Achei-o por sorte. Gosto de ir tirando livros ao acaso das prateleiras até encontrar algum que me agrade. Diz-se que é quando revolve muito bem o terreno que uma porca cega acaba por achar o que comer. E a verdade é que às vezes corre bem.

Abri-o, deliciei-me com o grafismo e encantei-me com as primeiras linhas: “Como seria o primeiro livro? Seria impresso ou escrito à mão? Seria de papel ou de qualquer outro material? E se, por acaso, ainda existe, em que biblioteca se poderá encontrar? Conta-se que houve uma vez um homem suficientemente ingénuo para procurar este primeiro livro em todas as bibliotecas do mundo.” Fiquei tão entusiasmado que li mais de metade ainda antes de o pagar, encostado à estante de onde o tirara. Nem dei pelo tempo passar, certamente muito, ao ponto de a minha presença, rivalizando em quietude com o homem-estátua que intriga os turistas na esplanada da Brasileira, ser bastante notada. Tanto assim foi que, a dada altura, um dos empregados da loja me ofereceu gentilmente uma cadeira. Um pouco envergonhado, justifiquei o abuso com distracção e entusiasmo pela obra, agradeci a oferta da cadeira, que recusei, alegando falta de tempo, paguei o livro e saí. Terminei de o ler pouco depois, enquanto caminhava para desemperrar as pernas.

O Homem e o Livro aborda a evolução da comunicação, a construção de alfabetos, a forma física dos livros e respectivos materiais de fabrico, o desenvolvimento de tecnologias de produção, a transição de livro-raridade (objecto único) à produção em massa autorizada pela invenção da imprensa e um brevíssimo capítulo sobre o destino dos livros — “Há um provérbio latino que diz: ‘Até os livros têm destino’. O destino de um livro é por vezes mais estranho que o de um ser humano” —, em que o autor aborda a questão da conservação para gerações seguintes e a destruição de livros por acidentes ou actos intencionais.

“Até os livros têm destino”, escreveu Iline, de forma algo enigmática, há mais de 90 anos. Recordei a sua afirmação após tomar conhecimento do Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses, conduzido pela Fundação Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, cuja conclusão mais difundida foi a elevada percentagem (61%) de inquiridos que não leu um único livro impresso no último ano.

De imediato, levantei para mim próprio uma questão: “Qual é o destino do livro?” Iline acompanhou a invenção da televisão, as primeiras transmissões experimentais foram realizadas em meados da década de 1920, ainda o meio de comunicação com maior propagação e importância do planeta, mesmo depois da popularização da Internet. O autor soviético não tinha forma de saber que a televisão, primeiro, e muito menos a Internet, depois, desviariam as pessoas da leitura. Mas já revelava uma preocupação sobre o destino dos livros e a inerente transmissão do conhecimento, da ficção e da fantasia neles contidos para as gerações seguintes. Uma preocupação que se estende (e cresce) aos nossos dias.

Ainda no mesmo Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses, ficámos também a saber que 90% dos inquiridos vêem televisão diariamente e que 71% utiliza a Internet todos os dias. Aos 61% que não leram um livro impresso, juntam-se 90% que não leram em formato digital. Não há dúvidas: a leitura não está no topo das preferências. O resultado destas escolhas — escolhas a nível mundial, entenda-se — reflecte-se, segundo Maryanne Wolf, uma neurocientista cognitiva norte-americana, numa diminuição do poder de leitura: “O excesso de tempo em ecrãs, telemóveis e tablets, desde a infância até a vida adulta, bem como os hábitos digitais associados a essas práticas, está a mudar radicalmente a forma como muitos de nós processamos a informação que lemos.” Ou seja, passamos cada vez mais os olhos superficialmente por publicações, textos e frases, o que está a diminuir a nossa capacidade de entender argumentos complexos, de analisar criticamente o que lemos e, ainda mais grave, de criar empatia por opiniões distintas das nossas. Especulando: talvez o incremento de posições extremadas a que assistimos nos últimos anos nas mais diversas áreas da sociedade, assim como a falta generalizada de meio-termo e de tolerância se possa explicar, em parte, com a falta de leitura…

E de nada disto se poderá culpar o livro, um maratonista com pulmão sem fim que tem resistido à prova do tempo, mantendo uma passada certa e firme no seu desígnio de oferecer conhecimento, inteligência, prazer, conforto, gratidão, amizade, amor, esperança, o infinito…

Termino com um manifesto de Umberto Eco, em Não contem com o fim do livro: “O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Não podemos fazer uma colher melhor do que uma colher. Os designers tentam melhorar, por exemplo, o saca-rolhas, com sucessos bem modestos, e, por sinal, a maioria nem funciona como deve ser. O livro venceu os seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos fazer algo melhor do que o próprio livro. Talvez ele evolua nos seus componentes, talvez as páginas deixem de ser em papel. Mas o livro permanecerá o que é.”

Sugerir correcção
Comentar