Luzes, câmara, fusão!

“Haverá produção de eletricidade por fusão nuclear daqui a 30 anos”, independentemente do ponto no tempo em que se profira esta frase?

Foi recentemente anunciado um novo recorde de produção de energia de fusão nuclear no Joint European Torus (JET), o maior reator mundial do tipo tokamak. Trata-se de mais um passo importante no caminho para uma fonte de energia abundante, segura e livre de emissões de carbono que é a promessa da fusão nuclear.

Apesar dos avanços científicos e tecnológicos que dão suporte à fusão, a complexidade e persistência de múltiplos desafios ao longo da história popularizaram uma anedota entre a comunidade científica: haverá produção de eletricidade por fusão nuclear daqui a 30 anos. Isto, independentemente do ponto no tempo em que se profira esta frase.

Mas afinal o que é a fusão nuclear e o que é um tokamak?

Comecemos por imaginar um gás composto por átomos de um elemento leve, como o Hidrogénio. Os átomos de Hidrogénio são leves porque são compostos apenas por um eletrão (partícula com carga elétrica elementar) e um núcleo que é apenas um protão (com carga elétrica simétrica à do eletrão). Na realidade, há átomos de Hidrogénio, mais ou menos estáveis, com núcleos que também incluem um ou dois neutrões (chamados isótopos deutério e trítio, respetivamente). Mas, em qualquer caso, são átomos simples e leves.

Imaginemos agora que esse gás fica sujeito a condições de muito elevada temperatura. A partir de certa altura, as “ligações” entre os núcleos e os seus eletrões serão quebradas, passando o anterior gás de átomos a ser um “banho” quase homogéneo de eletrões e iões, a que se dá o nome de plasma. Se um sistema deste tipo estiver fechado e houver uma densidade de partículas muito elevada, pode ocorrer que dois dos núcleos dos átomos originais, ultrapassando a sua repulsa entre cargas do mesmo sinal, se recombinem para formar um núcleo mais complexo. Esta reação de fusão nuclear ocorre porque é energeticamente mais favorável. E, como é energeticamente mais favorável, liberta energia durante a reação de fusão.

Este é o princípio básico para a produção de energia através de fusão nuclear. E este é o tipo de processos que domina na atividade de muitas estrelas, como o Sol, onde as altas temperatura e densidade são propícias à fusão nuclear.

Os princípios físicos da fusão são simples. Mas, nas condições que habitualmente encontramos à superfície da Terra, os átomos (muito mais frios e em condições de muito menor densidade) preferem manter uma certa distância “social”.

No final da década de 1950, os físicos soviéticos Igor Tamm e Andrei Sakharov propuseram o conceito de tokamak, aquele que se tornaria o mais popular na comunidade científica para a construção de um futuro reator de fusão nuclear. A ideia base do tokamak consistiu em aprisionar um plasma usando campos magnéticos, na forma de um “donut” a que se chama toroide. No Sol, a imensa força gravitacional fica encarregue de confinar o plasma. Na Terra, é necessário um esquema alternativo. Não sendo a única solução idealizada para realizar fusão nuclear, o tokamak foi o conceito que demonstrou avanços experimentais mais significativos durante o resto do século XX, justificando assim a sua preferência.

Mas, as barreiras económicas e políticas à fusão nuclear também existiram, naturalmente, devido à já referida complexidade dos desafios tecnológicos e a alguma idiossincrasia perante o nuclear. Em 1985, sob proposta de Gorbachev a Ronald Reagan, arrancou o que viria a ser um enorme esforço colaborativo internacional com vista à utilização pacífica da fusão nuclear. Hoje em dia agrega das maiores potências mundiais. China, União Europeia, Índia, Japão, Coreia do Sul, Rússia e Estados Unidos da América são membros do consórcio ITER que está a construir no sul de França aquele que será o próximo maior tokamak do mundo.

As dificuldades na gestão deste empreendimento também não têm sido despiciendas. Em particular, porque parece ter havido uma convolução na organização responsável pelo ITER com as camadas tecno-burocratas da União Europeia, muito habituadas a produzir documentação e porventura menos a documentar produção.

Ainda assim, o anúncio dos resultados recorde no JET, aparece quando toda a comunidade da fusão “por confinamento magnético” se encontra já há muito virada para a construção e operação do ITER e até do tokamak que lhe seguirá, o DEMO (nome que nos deve transportar para uma central de demonstração, e não para o diabo dos detalhes).

O caminho da fusão nuclear não parou de ser trilhado, e já vai além destes últimos resultados. Na verdade, parece até cada vez mais possível que não haja um único caminho para realizar a fusão. Outros conceitos, alternativos ao do tokamak, têm ganho tração nos últimos anos. Um exemplo é a fusão por confinamento inercial, que tem substancial financiamento público em alguns países, e outros exemplos são conceitos sucedâneos do tokamak, como o stellarator, ou sistemas compactos com recurso a materiais supercondutores para a produção de campos magnéticos muito mais elevados do que se julgava ser possível implementar. Há até um crescente volume de investimento privado no que são já algumas dezenas de start-ups com propostas de reatores de fusão, algo também impensável até há relativamente pouco tempo.

Por tudo isto, e agora debaixo dos holofotes da sociedade, poderá surgir uma nova frase, transportada do anedotário da fusão: teremos eletricidade produzida por fusão nuclear, na altura em que ela for precisa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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