Quarto de Despejo em discussão no Encontro de Leituras de Março

A académica Fernanda R. Miranda, especialista na obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), e Tom Farias, o biógrafo da escritora negra e pobre que tinha o sonho de mudar a sua vida através da literatura, são os convidados do Encontro de Leituras de 8 de Março.

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Carolina Maria de Jesus ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO/CEDIDA PELO INSTITUTO MOREIRA SALLES

Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é a obra escolhida pelo Encontro de Leituras para a conversa de dia 8 de Março. A sessão acontecerá no Zoom, como habitualmente, às 22h de Lisboa (19h de Brasília), com a ID 863 4569 9958 e a senha de acesso 553074. Aqui fica o link.

Este é “um texto que conversa profundamente com os dilemas sociais, políticos e enunciativos do presente, e que guarda a voz soberana de uma mulher que não se deixou jamais silenciar”, escreve a investigadora e crítica literária brasileira Fernanda R. Miranda no prefácio da edição portuguesa de Quarto de Despejo, da editora de Vasco Santos. “Pelo fluxo de pensamento sempre vivo no diário, acompanhamos Carolina em seu constante caminhar na cidade, e também acompanhamos seus sonhos e utopias, sua busca existencial, a teimosia de ser e criar, os arranjos materiais necessários à vida, a luta de cada dia, a criatividade.”

Esta especialista na obra de Carolina Maria de Jesus, com uma tese de doutoramento sobre Corpo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006), será uma das convidadas do clube de leitura do PÚBLICO e da Folha de S. Paulo de Março juntamente com o professor de literatura brasileira, jornalista e biógrafo Tom Farias, autor do livro Carolina — Uma Biografia, publicado no Brasil pela Editora Malé mas que está à venda na Livraria da Travessa, em Lisboa, e online.

O Encontro de Leituras junta leitores de língua portuguesa uma vez por mês e discute romances, ensaios, memórias, literatura de viagem e obras de jornalismo literário, na presença de um escritor, editor ou especialista convidado. É moderado pela jornalista Isabel Coutinho, responsável pelo site do PÚBLICO dedicado aos livros, o Leituras, e pelo jornalista da Folha de S. Paulo Eduardo Sombini, apresentador do Ilustríssima Conversa, podcast de livros de não-ficção.

Quarto de Despejo foi publicado pela primeira vez no Brasil em Agosto de 1960, com organização de Audalio Dantas (1929-2018), o jornalista que em 1958 durante uma reportagem na favela do Canindé, em São Paulo, conheceu Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, mãe solteira e catadora de papel, que lhe mostrou o que escrevia nos seus cadernos e lhe contou que há anos tentava publicar a sua poesia.

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Carolina Maria de Jesus ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO/CEDIDA PELO INSTITUTO MOREIRA SALLES

O diário, que vai de 1955 a 1960, começa por um relato que nunca mais se esquece: “15 de Julho de 1955: Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos géneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. Eu não tinha um tostão para comprar pão.”

Para Fernanda R. Miranda​ esta é “uma obra muito central para se entender o século XX”, para se “entender como a modernidade aconteceu no Brasil”. Quarto de Despejo, editado actualmente no Brasil pela Ática, foi logo um enorme sucesso editorial quando saiu nos anos 1960 naquele país. Na época o livro vendia 2500 exemplares por dia e rapidamente foi traduzido para 13 línguas. Mas em 1961, durante a ditadura em Portugal, Quarto de Despejo foi proibido de circular em Portugal por Oliveira Salazar (1889-1970).

Um português exilado no Rio de Janeiro enviou o livro para Portugal e ele foi-lhe devolvido com um carimbo de “Proibido”, como contou em Maio o biógrafo ao Ípsilon. Para o ditador, a obra de Carolina atentava “aos bons costumes do povo português.” Por isso, o livro foi também impedido de circular em Angola, Moçambique e Cabo Verde (na altura colónias portuguesas) onde continua por publicar. “Carolina protestou na época, através dos jornais, afirmando: ‘Ouvi dizer que o sr. Oliveira Salazar não gosta de preto. Ouvi dizer que o sr. Oliveira Salazar tem de branco só a pele.’”

Esta mulher que nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em 1914, e que viveu na favela do Canindé durante 12 anos, em São Paulo, tinha o sonho de escrever e de mudar a sua vida através da literatura. E mudou. “Isso a que se chama o lugar de fala, o empoderamento de uma mulher simples, pobre, do povo, que venceu através da escrita”, realça o biógrafo Tom Farias. E tantas décadas depois, continua a inspirar quem a lê.

Carolina Maria de Jesus foi “uma grande mulher em busca de sua própria voz, de seu espaço no mundo, de se compreender, de compreender o tempo”, considera a académica Fernanda R. Miranda, “Quando se lê a obra com os olhos abertos, sem essa camada de preconceitos que ainda são muito presentes na recepção de Carolina podemos encontrar ali das maiores obras da literatura”.

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