Não têm lugar à mesa de uma democracia

André Ventura até pode querer uma nova república, mas esta que temos ainda não é a república das bananas, pelo que não pode ganhar na secretaria aquilo que não consegue na urna.

O partido que prometia fazer tremer o sistema não perdeu tempo para mostrar que a intenção era apenas metafórica: na verdade queria mesmo era os lugares do sistema. E, para começar, nada melhor do que disputar o lugar de terceiro vice-presidente da Assembleia da República. Dirão que ser terceiro vice-presidente é bem melhor do que primeiro secretário e que o tema até pode ser importante, mas duvido que tenha encarniçado opiniões à mesa do café ou polarizado discussões familiares. Suspeito mesmo que não tenha sequer evitado um bocejo de quem teve de assistir à polémica que, na verdade, nem se qualifica para a espuma dos dias.

Não sei se também é efeito das alterações climáticas e consequência deste inverno mais seco, mas parece que a silly season já chegou. Só assim se explica toda a atenção mediática dada a este tema. A comunicação social, sempre alarmada com a possibilidade de crescimento da extrema-direita, não foi parca no palco que lhe deu sobre um tema que não tem a mínima importância para a vida das pessoas. De completos desconhecidos há pouco mais de uma semana, até mesmo para quem neles votou, foi quase completa a rodagem dos novos deputados e deputada pelos canais noticiosos.

Sei bem que alguns dirão que assim ficou exposto o seu racismo, a misoginia ou a xenofobia, como se aquela montra de horrores pudesse afinal ser redentora para a democracia. E até podem repetir o argumento à exaustão para que as consciências não pesem no momento do descanso, mas não é por insistir numa mentira que se torna verdadeira. Dar espaço mediático à extrema-direita não é um serviço à democracia, bem pelo contrário, é dar a oportunidade e o tempo para poderem encontrar outras pessoas que se identifiquem com a sua mensagem de ódio e de intolerância.

E porque é que este tema é uma encenação e não um verdadeiro assunto? Comecemos pela parte mais anedótica: o mesmo partido que quer rasgar a Constituição (CRP) e sempre desvalorizou (quando não o atacou) o Tribunal Constitucional (TC) diz-se vítima da falta de cumprimento da CRP e promete recorrer para o TC. De uma penada, vai para o caixote do lixo a separação de poderes entre órgãos de soberania… Ora, o que a CRP diz é que os quatro maiores partidos podem apresentar nomes para os lugares da Mesa da Assembleia da República, tendo depois, cada um dos candidatos, que conseguir 116 votos para ser eleito. Isto é, cada candidato tem de passar no sufrágio democrático e conseguir uma maioria parlamentar de apoio. André Ventura até pode querer uma nova república, mas esta que temos ainda não é a república das bananas, pelo que não pode ganhar na secretaria aquilo que não consegue na urna. Mas, convém insistir neste ponto, isto foi só uma forma de Chega chamar a atenção. Ventura sabe que nenhum candidato que possa apresentar chegará a vice-presidente da AR porque os valores da tolerância, dos direitos humanos, do humanismo e da democracia não são representados pelo seu partido.

No entanto, a encenação não é só responsabilidade de Ventura, convém reconhecer. Todo este circo que durou mais de uma semana só foi possível porque o PS o permitiu. É que com 119 deputados eleitos pelo PS, a tal maioria absoluta, não há ninguém que cumpra o critério de eleição para a Mesa da AR (116 votos) sem que o PS o permita. No entanto, passaram sete dias até que se ouvisse a atual líder parlamentar, Ana Catarina Mendes, tecer comentários sobre este assunto. Neste período as posições foram dúbias, esquivas e, principalmente, favoráveis à manutenção desta novela: António Costa garantia não chamar o Chega para qualquer reunião ao mesmo tempo que se criava um tabu sobre a participação da extrema-direita na composição da Mesa da AR. A tal ideia de querer tornar o PS o partido charneira da democracia justifica dar este palco à extrema-direita? Será esta centralidade dada ao Chega uma tática para acentuar a fragmentação da direita? Brincar com o fogo não traz bons resultados.

P.S. Cesso esta coluna depois de um período de companhia pelo qual estou grato. Não interromperei a opinião, essa haverá sempre para partilhar pelas janelas que a vida abrir com esse fim. Não é um até já, nem sequer um até sempre - é a promessa de marcar presença nos debates que contam com ideias para trocar e a humildade de saber ouvir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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