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Indígenas da Terra do Fogo procuram renascer das cinzas de um genocídio

Séculos depois do navegador português Fernão de Magalhães ter colocado a Terra do Fogo no mapa-mundo, o povo selk'nam, dali originário, sofreu aquilo que a antropóloga Nina Radovic Fanta e o fotojornalista Márcio Pimenta classificam de genocídio. Muito poucos sobreviveram e lutam, hoje, por reconhecimento da sua etnia por parte do governo do Chile.

José Luis Vásquez Chogue, secretário da Corporação selk'nam. É a primeira vez que José visita a terra dos seus antepassados, na Terra do Fogo. "Senti uma emoção e uma energia que nunca tinha sentido. Tentei ver e experienciar este lugar através dos olhos do meu avô." O seu avô foi entregue para adopção a uma família francesa. Há 30 anos que José busca as suas origens, em conjunto com o irmão Hector. Punta Arenas, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
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José Luis Vásquez Chogue, secretário da Corporação selk'nam. É a primeira vez que José visita a terra dos seus antepassados, na Terra do Fogo. "Senti uma emoção e uma energia que nunca tinha sentido. Tentei ver e experienciar este lugar através dos olhos do meu avô." O seu avô foi entregue para adopção a uma família francesa. Há 30 anos que José busca as suas origens, em conjunto com o irmão Hector. Punta Arenas, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta

Em 1519, quando o navegador português Fernão de Magalhães partiu em busca das ilhas Molucas numa expedição paga pela coroa espanhola, a sua nau cruzou, pela primeira vez, o estreito que viria a ser baptizado com o seu nome. Abaixo da latitude de 52ºS, ao largo da costa que pertence actualmente ao Chile, Magalhães avistou, entre o nevoeiro que se formava, o fumo de fogueiras: este seria o primeiro indício de presença humana em tão remotas e inóspitas paragens. Chamou-lhe, assim, a Terra do Fogo. E as fogueiras, a quem pertenciam? Ao povo selk'nam (também conhecido como ona), cujos membros lutam, presentemente, pela inclusão da sua etnia na lista das principais reconhecidas pela Lei Indígena chilena.

Mas quem são os selk'nam? A antropóloga Nina Radovic Fanta, que acompanhou o fotojornalista Márcio Pimenta na redescoberta de Karukinka, a terra que os selk'nam habitavam originalmente, descreve-os como um grupo de caçadores-recolectores que se instalou na zona austral do continente sul-americano há mais de dez mil anos e que teve, no século XIX, antes de a Terra do Fogo ser dividida entre a Argentina e o Chile, em 1881, o infortúnio de se cruzar com os fazendeiros europeus que ali decidiram assentar arraiais. "Primeiro buscavam ouro", refere Nina no texto que acompanha o projecto Choque de Civilizações, financiado pelo Pulitzer Center on Crisis Reporting. "Trouxeram com eles germes que provocaram epidemias de tuberculose, sífilis e infecções respiratórias." Era, para os selk'nam e outros grupos de caçadores-recolectores da região (os tehuelche, os yagane, os haush e os kawesqar) , "o início do fim".  

Depois dos europeus, chegaram a Karukinka os "aventureiros" chilenos e os argentinos, que se dedicaram à criação de ovelhas. Sem compreenderem o conceito de propriedade privada, os caçadores-recolectores fizeram das ovelhas domesticadas suas presas e provocaram uma guerra. "Os recém-chegados decidiram erradicar a população selk’nam a fim de se apropriarem de toda a terra e contrataram, para isso, caçadores de recompensas", narra a antropóloga. "Estes cortavam as orelhas dos selk’nam apanhados em flagrante a caçar ovelhas e exibiam-nas aos fazendeiros como prova do 'trabalho', de forma a receberem pagamento." Para os selk'nam reincidentes, a morte por decapitação era destino certo. "Naturalmente, houve reacção e os selk’nam mataram os fazendeiros que conseguiram alcançar com suas flechas." 

Numa luta desigual, os selk'nam saíram derrotados. Os homens foram exterminados; os idosos, as mulheres e as crianças foram capturados e vendidos como criados domésticos. "Doenças, desnutrição, evangelização, perda de cultura e separação das famílias dizimaram a população", descreve Nina. "Quando os fazendeiros [argentinos e chilenos] chegaram, havia cerca de quatro mil selk’nam; em 1930, havia pouco mais de cem. Os selk’nam foram dados como extintos nos livros de história e nas leis, ambos escritos pelos vencedores." 

Aquilo que Nina descreve como o "genocídio selk'nam" foi praticamente esquecido ao longo de um século. Na década de 2010, porém, e graças à internet, pessoas da etnia selk'nam encontraram-se e formaram um grupo que pretende "reescrever a história oficial, descolonizar e desnaturalizar a perspectiva histórica, recuperar e ressignificar o que aconteceu". No Chile, o grupo chama-se Comunidad Covadonga-Ona e é composto por cerca de 200 pessoas; na Argentina dá pelo nome de Comunidad Rafaela Ishton e tem à volta de mil membros. Juntos, lutam pelo direito "ao reconhecimento de que ainda existem, de que não foram extintos". Ou seja, "que pertencem a um povo vivo". "Não sou um descendente", afirma Pantoja, um membro do grupo Ishton entrevistado por Nina e Márcio. "Eu sou um selk'nam."

A maioria dos selk'nam vive, actualmente, longe da Patagónia, em cidades chilenas, como Santiago, Valparaíso, Villa Alemana, Valdívia, Arica, ou no exterior do Chile, nos Estados Unidos, Canadá, Suécia. O seu modo de vida difere, em todos os aspectos, do modo de vida dos familiares passados. "Nós crescemos como toda a gente, temos telemóveis, computadores, empregos, pagamos impostos, cumprimos horário de trabalho”, diz Hema’ny Molina, presidente da Corporación Selk’nam Chile​.

O que significa ser selk'nam na contemporaneidade? “Eu sempre soube que era selk’nam", refere Molina. Mas isso não significava viver como tal ou entender como fazê-lo. Existem várias camadas complexas." Para Molina, ser reconhecida como selk'nam não a obriga a adoptar comportamentos que as pessoas associam, de forma estereotipada, aos indígenas do passado. Trata-se, antes, de uma jornada para reconstruir as histórias familiares — objectivo para o qual tem sido fundamental o contributo dos investigadores da Universidade Católica Silva Henríquez e da Universidade de Magallanes.

Os irmãos Hector e Luis Chogue descobriram, há quatro anos, serem selk'nam ao encontrarem o nome do avô num dos antigos cadernos de registo salesianos da ilha Dawson — uma prova cabal da sua origem indígena. Mas, então, porque partilhavam um sobrenome de origem francesa? Nina explica: "O genocídio marcou profundamente os poucos selk’nam que permaneceram na Patagónia. Os sobreviventes criaram os filhos sem enfatizar sua etnia." Os irmãos visitaram a Terra do Fogo pela primeira vez em Outubro de 2021. "Foi uma emoção e uma energia que eu nunca havia experimentado", conta José. "Tentei ver e viver o lugar com os olhos do meu avô.”

Os grupos selk'nam pretendem, sobretudo, deixar de ser anónimos. "Temos a responsabilidade de tornar visível a nossa cultura", reforça Hector Chogue, esperando que 2022 traga o tão aguardado reconhecimento da sua comunidade viva por parte do governo do Chile. ​“O que aconteceu com os selk’nam não pode ser esquecido pela sociedade chilena”, conclui.

Hector Vasquez Chogue, em Santiago do Chile. Hector soube que é selk'nam há quatro anos, após 30 anos em busca das suas origens. Santiago do Chile, 2021
Hector Vasquez Chogue, em Santiago do Chile. Hector soube que é selk'nam há quatro anos, após 30 anos em busca das suas origens. Santiago do Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Flechas de pena de mocho. Se um selk'nam visse o chefe da tribo com este conjunto de penas, sabia que deveria preparar-se para lutar. Este artefacto pertence ao Museu Maggiorino Borgatello, em Punta Arenas, Chile. Punta Arenas, Chile, 2021
Flechas de pena de mocho. Se um selk'nam visse o chefe da tribo com este conjunto de penas, sabia que deveria preparar-se para lutar. Este artefacto pertence ao Museu Maggiorino Borgatello, em Punta Arenas, Chile. Punta Arenas, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Arco e flechas de brincar numa bolsa feita de pele de guanaco. Era usado por crianças para brincar e adquirir competências de caça. Este artefacto pertence ao Museu Maggiorino Borgatello, em Punta Arenas, Chile. Punta Arenas, Chile, 2021
Arco e flechas de brincar numa bolsa feita de pele de guanaco. Era usado por crianças para brincar e adquirir competências de caça. Este artefacto pertence ao Museu Maggiorino Borgatello, em Punta Arenas, Chile. Punta Arenas, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Réplica de uma bandeira selk'nam. Originalmente, não havia uma bandeira. Foi criada por crianças e mulheres que estiveram nas instituições salesianas, na Ilha de Dawson, no Chile. Os selk'nam acreditavam que quando morriam se tornavam estrelas. Santiago, Chile, 2021
Réplica de uma bandeira selk'nam. Originalmente, não havia uma bandeira. Foi criada por crianças e mulheres que estiveram nas instituições salesianas, na Ilha de Dawson, no Chile. Os selk'nam acreditavam que quando morriam se tornavam estrelas. Santiago, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
O guanaco (Lama guanicoe) teve um papel fundamental na sobrevivência dos povos da Terra do Fogo. A sua carne era consumida, a sua pele usada para confeccionar roupas e utensílios. Terra do Fogo, Chile, 2021
O guanaco (Lama guanicoe) teve um papel fundamental na sobrevivência dos povos da Terra do Fogo. A sua carne era consumida, a sua pele usada para confeccionar roupas e utensílios. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
O guanaco (Lama guanicoe) terá chegado à Terra do Fogo quando os selk'nam atravessaram a fatia de terra que conectava a ilha ao continente. Terra do Fogo, Chile, 2021
O guanaco (Lama guanicoe) terá chegado à Terra do Fogo quando os selk'nam atravessaram a fatia de terra que conectava a ilha ao continente. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Na Bahía Inutil, um dos lugares arqueológicos mais importantes é a Pedra de Marazzi, reconhecida como uma das mais antigas da ilha, com cerca de 9500 anos. Aqui foram encontrados artefactos que comprovam a presença de humanos caçadores de pássaros e guanacos. Terra do Fogo, Chile, 2021
Na Bahía Inutil, um dos lugares arqueológicos mais importantes é a Pedra de Marazzi, reconhecida como uma das mais antigas da ilha, com cerca de 9500 anos. Aqui foram encontrados artefactos que comprovam a presença de humanos caçadores de pássaros e guanacos. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Sociedade Ganadera Gente Grande foi a primeira quinta fundada na Terra do Fogo, em 1883. Aqui começou o conflito entre os selk'nam e os fazendeiros.  A casa tinha um porto para os navios. Alguns selk'nam foram levados para a Europa para serem exibidos em parques zoológicos de humanos. Terra do Fogo, Chile, 2021
Sociedade Ganadera Gente Grande foi a primeira quinta fundada na Terra do Fogo, em 1883. Aqui começou o conflito entre os selk'nam e os fazendeiros. A casa tinha um porto para os navios. Alguns selk'nam foram levados para a Europa para serem exibidos em parques zoológicos de humanos. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Os europeus trouxeram cavalos e ovelhas. O estilo de vida que exigia um grande uso de terras foi fonte de conflito com os selk'nam. Terra do Fogo, Chile, 2021
Os europeus trouxeram cavalos e ovelhas. O estilo de vida que exigia um grande uso de terras foi fonte de conflito com os selk'nam. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
As forças da ocupação tinham um objectivo: criar ovelhas. Os colonos invadiram os lugares onde os selk'nam pescavam e caçavam. Terra do Fogo, Chile, 2021
As forças da ocupação tinham um objectivo: criar ovelhas. Os colonos invadiram os lugares onde os selk'nam pescavam e caçavam. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Trabalhador tosquia uma ovelha. Terra do Fogo, Chile, 2021
Trabalhador tosquia uma ovelha. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
O cemitério de Onaisin, também conhecido por Cemitério dos Ingleses ou dos colonos. O cemitério pertence aos residentes do resort Caleta Josefina, da Sociedad Exploradora da Tierra del Fuego, e é hoje um monumento histórico do Chile. Aqui estão sepultados alguns dos colonos que foram mortos durante o conflito com os selk'nam. Terra do Fogo, Chile, 2021
O cemitério de Onaisin, também conhecido por Cemitério dos Ingleses ou dos colonos. O cemitério pertence aos residentes do resort Caleta Josefina, da Sociedad Exploradora da Tierra del Fuego, e é hoje um monumento histórico do Chile. Aqui estão sepultados alguns dos colonos que foram mortos durante o conflito com os selk'nam. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
“Erigido pelos seus colegas de trabalho em memória de John Saldine, morto por índios no dia 20 de Julho de 1898", pode ler-se na lápide de uma das sepulturas do cemitério de Onaisin. Terra do Fogo, Chile, 2021
“Erigido pelos seus colegas de trabalho em memória de John Saldine, morto por índios no dia 20 de Julho de 1898", pode ler-se na lápide de uma das sepulturas do cemitério de Onaisin. Terra do Fogo, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta
Existem registos que sugerem que alguns grupos de selk'nams foram detidos nas quintas antes de serem transportados para a Ilha Dawson. Ou assassinados. Terra do Fogo, Chile, 2021.
Existem registos que sugerem que alguns grupos de selk'nams foram detidos nas quintas antes de serem transportados para a Ilha Dawson. Ou assassinados. Terra do Fogo, Chile, 2021. ©Márcio Pimenta
Mar do Estreito de Magalhães, Chile, 2021
Mar do Estreito de Magalhães, Chile, 2021 ©Márcio Pimenta