É tempo de levar a sério a justiça territorial

O foco na justiça espacial exige a coragem de desvalorizar, em certas circunstâncias, a racionalidade e eficiência financeira no investimento público, sem, todavia, abandonar o rigor que todos desejamos.

A justiça social é, à partida, uma preocupação central em todos os países democráticos, que procuram, de múltiplas formas e à medida dos seus recursos, corrigir as assimetrias estruturais sentidas nos vários campos em que se sente.

Porém, desde meados do século passado que se percebeu que a atenção dada à justiça social não era suficientemente eficaz e necessitava, para se concretizar de facto, de considerar a dimensão territorial. Por outras palavras, foi ficando claro que a função redistributiva do Estado a favor dos indivíduos, famílias e comunidades menos privilegiadas tinha de apontar, não só para a coesão social stricto sensu, como também para o território, onde se materializam as assimetrias e se afere o (in)sucesso das medidas desenhadas para as colmatar. Por isso, começaram a surgir nos documentos da União Europeia, na sequência de estudos da OCDE e do Banco Mundial, referências à coesão territorial, primeiro timidamente no Tratado de Amesterdão e depois, de modo mais explícito, na Agenda Territorial da União Europeia de 2007, no Livro Verde da Coesão Territorial Europeia de 2008 e no Tratado de Lisboa de 2009.

Entendida enquanto territorialização das desigualdades, a injustiça territorial foi, assim, assumindo um protagonismo crescente até ao ponto de integrar uma das seis prioridades da Agenda Territorial 2030, que sublinha a necessidade de “diminuir a desigualdade entre lugares através de medidas que, nos diferentes níveis de governança, promovam o desenvolvimento local e regional convergente”, e a Nova Carta de Leipzig de 2020, que aposta numa “governança urbana flexível” para enfrentar os desafios e objetivos de política urbana necessários ao ‘bem comum’, destacando a ideia de “Cidade Justa”.

Em Portugal, os passos para a integração da dimensão territorial nas políticas públicas foram dados sobretudo com o lançamento da Política de Cidades Polis XXI (2007-2013), pela mão de João Ferrão, culminando, em 2019, na criação do ministério da Coesão Territorial, conquistando um espaço próprio na agenda política.

Reconhecida então a pertinência e a relevância da ideia de uma justa distribuição de recursos pelo território, da necessidade de uma discriminação positiva, quando se justifique, e ainda da garantia de acesso universal a esses recursos (o VI Relatório sobre a Coesão Europeia de 2014 sublinhava a urgência de melhorar a acessibilidade das cidadãs e cidadãos aos serviços, incluindo as telecomunicações, a energia e os transportes), interessa perceber a dificuldade histórica da sua concretização.

A coesão social e até a coesão económica são concretizadas em larga medida com o apoio direto às pessoas, às famílias e às empresas, mas também indiretamente com o apoio a entidades terceiras comprometidas com este desafio. O problema coloca-se quando, para promover a coesão, é necessário introduzir políticas de justiça espacial. Porquê? Porque, ao contrário das tradicionais políticas redistributivas da riqueza gerada, a política de coesão territorial enfrenta fatores contraditórios, que obrigam à tomada de decisões difíceis e, sobretudo, a conviver com as suas consequências. À escala nacional, o mais clássico exemplo é o do isolamento de algumas ilhas do arquipélago dos Açores que, face ao seu reduzido volume demográfico, estão sobreequipadas em serviços de interesse geral. Este investimento público significativo está justificado pelo que, no léxico da União Europeia, se convencionou designar regiões ultraperiféricas.

Outro exemplo, mas em sentido contrário, pode ser reconhecido no processo de encerramento generalizado de serviços de interesse coletivo numa larga fatia de Portugal continental, explicado pelas baixas densidades e pela necessidade de minimizar e racionalizar o investimento público, obter maior eficiência locativa e garantir a prestação de melhores serviços, dando-lhes escala e concentrando-os em locais com maior procura.

Veja-se ainda o caso dos investimentos rodoviários onde as autoestradas, que retalharam o país e nos transformaram no segundo do mundo (colado a Espanha) com o mais elevado rácio de quilómetro de autoestrada por habitante, produzindo efeitos locais nem sempre vantajosos. A multiplicação e consolidação de estabelecimentos de ensino superior público, por exemplo, que ocorre logo após esta transformação estrutural das acessibilidades, formando uma malha territorial bastante apertada, permitiu ampliar a oferta deste nível de ensino e alargar o número de investigadores e centros de investigação. Situação de sinal inverso ocorreu com a sangria de recursos que alguns territórios sofreram com a presença das novas vias, já que passaram a ficar a uma menor distância-tempo dos preexistentes polos de emprego e de prestação de serviços que viram alargar, assim, o seu hinterland.

Enquanto no primeiro exemplo se está perante a concretização de princípios da justiça espacial, nos restantes parece que se está a fragilizá-la. E está, não pelos motivos de polarização, mas porque se falha no proporcionar de ligações públicas em distância-frequência, distância-tempo, distância-custo e, inclusivamente, distância-conforto adequadas para as comunidades que habitam os lugares entretanto esvaziados, não só de oportunidades de emprego, como de equipamentos e serviços essenciais à sua qualidade de vida. E é aqui que a desigualdade emerge.

Eis-nos então chegados à definição do principal problema em que se tem enredado a justiça espacial. A adequada repartição no espaço dos recursos coletivos essenciais para a coesão social e económica exige racionalidade financeira, solidariedade espacial, mas também meios adicionais capazes de vencer a fricção geográfica existente entre a procura e oferta, antes exclusivamente assentes no sistema de mobilidade e acessibilidade física e agora, como resultado da experiência saída da pandemia, complementados com o sistema digital de comunicações.

Estabelecido o conceito e explorado o problema, será possível reconhecer as consequências da ausência, ineficiência ou contradição das políticas públicas neste domínio? Curiosamente, a academia não tem dado grandes contributos para pensar e refletir criticamente sobre as novas assimetrias territoriais e sobre as que teimam em persistir, mesmo quando a crise pandémica as expôs de forma gritante (e aqui merecem uma referência especial as áreas metropolitanas, onde os problemas e os seus efeitos não se reduzem apenas ao reconhecimento da desigualdade espacial e social como, sobretudo, à magnitude que atinge no volume de população afetada, normalmente a mais frágil nos rendimentos, no acesso a apoios sociais, nas condições de habitação e deslocação).

Sabemos, desde o conhecido trabalho The Spirit Level: Why more equal societies almost always do better, de Wilkinson e Pickett (2009), que é a desigualdade e não tanto a riqueza que condiciona o bem-estar social dos territórios. Por outras palavras, é a capacidade de, em territórios pobres ou ricos, se conseguir proceder a uma redistribuição adequada dos recursos disponíveis que fomente um maior capital territorial e social, traduzido em maiores níveis de confiança e cooperação. Dito ao contrário, é nos territórios mais desiguais que se observam as comunidades mais frágeis, com as consequências a estenderem-se a esferas tão distintas como a economia, educação, ambiente, saúde ou segurança.

Ficam assim, a nosso ver, em causa as orientações do receituário neoliberal que, desde os anos 80 do século passado, minaram estes princípios fundamentais, descrevendo-os como causa maior da ruína do estado e incentivo à dependência de indivíduos, comunidades e territórios.

Sendo precisamente o inverso, o foco na justiça espacial exige a coragem de desvalorizar, em certas circunstâncias, a racionalidade e eficiência financeira no investimento público sem, todavia, nunca abandonar o rigor que todos desejamos; obriga à descriminação positiva, dos espaços e comunidades que mais distantes estão de uma qualidade de vida aceitável, valorizando redes de cooperação e estruturas de governança – económicas, territoriais, sociais – capazes de distribuir valor e recursos de modo mais adequado; finalmente, a justiça espacial ambiciona a mudar vidas e territórios, sabendo que é a reboque desse desejo que se ganhará corpo para dispor de dispositivos produtivos capazes de aproveitar o manancial de infraestruturas, equipamentos, financiamento e capital humano de que, felizmente, já reunimos, mas que demoramos a aproveitar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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