Mudar de fornecedor

Só promovendo um partido de esquerda que estruturalmente não dependa da sua direcção na formação de listas eleitorais poderemos evitar a política em circuito fechado, o clientelismo e em última análise a perda de contacto com a realidade.

Cipriano Justo escreveu neste jornal, em 3 de Fevereiro: “O PS funcionou para muito eleitorado como o chapéu-de-chuva onde se foram abrigar da trovoada política que um entendimento do PSD com a extrema-direita representaria… Para esse medo deve ter contribuído a memória colectiva recente do que foram os quatro anos de governação de outro líder do PSD, Passos Coelho.”

Faltou, contudo acrescentar que Rui Rio não se demarcou do Chega porque a sua estrutura democrática deixa muito a desejar, para os padrões normais do conceito. No Porto, em muitas circunstâncias e situações, Rio pisou os limites constitucionais dos Direitos, Liberdades e Garantias. Por isso as barbaridades contracivilizacionais do Chega são para ele apenas excessos, e o Chega é um activo que pode ser valioso para apoiar o PSD em momentos críticos como a aprovação do Orçamento do Estado (OE).

Ora, se o eleitorado pode não racionalizar completamente estas coisas, tem pelo menos o instinto de conservação, e a palavra “medo” escolhida por Cipriano Justo é a adequada. De facto, durante um debate com Rui Tavares, do Livre, o chefe do Chega não desmentiu a informação de que o seu partido, que se autoproclama paladino da luta contra a corrupção, será afinal apoiado por vendedores de armas, por gente citada nos Panam Papers e por gente duvidosa ligada ao escândalo do BES; isto mete “medo”.

O medo é um reflexo instintivo de defesa, que agora nos salvou de uma situação difícil.

O BE e o PCP foram também sacrificados, porque, devido ao seu isolamento das bases, não acompanharam a mudança dos tempos e deixaram de representar a esquerda, antes mesmo do chumbo do OE (vd os resultados da Sondagem das Sondagens antes e depois do dia 27 de Outubro - chumbo do OE).

O chumbo no OE foi uma rotura em que não ficou demonstrado que o PS, que logo veio pedir a maioria absoluta, não teria sido tão responsável como os partidos mais à esquerda. Como os números da citada Sondagem, das Sondagens demonstram, o PCP e o BE não foram de facto castigados pelo disparate aventureiro de provocarem a queda do Governo, mas pelo instinto de defesa do eleitorado que ainda não se esqueceu do trauma da versão Passos Coelho do PSD.

Que caminhos restam à Esquerda?

Só promovendo um partido de esquerda que estruturalmente não dependa da sua direcção na formação de listas eleitorais poderemos evitar a política em circuito fechado, o clientelismo e em última análise a perda de contacto com a realidade. Enquanto os partidos dependerem de decisões arbitrárias de direções, facções ou grupos de pressão, o tempo acabará por permitir selecionar, não os melhores na política, mas os melhores na gestão dos bancos de favores.

No PCP o centralismo democrático desenhado por Lenine para construir um exército de assalto ao poder deixou há muito de funcionar na Europa e quase já só existia em Portugal, estando agora infelizmente destinado à sua preservação em áreas protegidas.

No BE a irreverência e frescura iniciais foram substituídos pela cassete do radicalismo pequeno burguês e o carreirismo impediu, tal como no PCP, um entendimento entre os dois partidos. O isolamento das listas nas autárquicas, em muitos casos suicidário, confirmou a incapacidade de ajustar a estratégia à necessidade de garantir uma representação duma fatia relevante do eleitorado.

Agora o discurso sem autocrítica de Catarina Martins e a insistência nas soluções repetidamente falhadas preconizadas por unanimidade pelo comité central do PCP mostram que, tal como acontece nos partidos tradicionais da Direita, também à Esquerda a realidade que seria identificável se houvesse capacidade para ouvir as bases foi substituída por narrativas auto-alimentadas das cúpulas partidárias. Devido à sua arquitectura estes partidos apenas poderão replicar, mesmo com outros protagonistas, os mesmos problemas que voltarão originar os mesmos resultados.

Em resumo os democratas à esquerda do PS têm de mudar de fornecedor.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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