A emancipação de Josefa

A renovação artística que no caso português valoriza artistas como Lurdes Castro ou Helena Almeida, entre outras mulheres do século XX, foi também responsável pelo novo olhar sobre uma pintora do século XVII de mérito reconhecido, Josefa de Óbidos (1630-1684).

Os debates destas eleições deixaram para trás um dos temas que mais preocupam as mulheres: o seu reconhecimento pela sociedade. Um tema que está na agenda mediática, mas desprezado nos momentos decisivos.

Encontramos na arte contemporânea exemplos para o devido reconhecimento da mulher a par do valor do homem para uma sociedade que se pretende evoluída.

Nos anos 70 do século XX, surgiu um movimento cultural que reabilitou a arte no feminino, preconizando as novas tendências defendidas pelas historiadoras de arte Linda Nochlin e Griselda Pollock, que destacaram pela primeira vez o papel das mulheres artistas, até então sujeitas ao esquecimento na cultura contemporânea.

A exposição Women Artists 1550-1950, em Los Angeles, em 1976, reuniu pela primeira vez num mesmo espaço artistas de nacionalidades diversas e obras de períodos distantes na História, com vista a mostrar as diversas abordagens da arte feminina, o que vai conferir importância ao tema das artistas-mulheres.

A renovação artística que no caso português valoriza artistas como Lurdes Castro ou Helena Almeida, entre outras mulheres do século XX, foi também responsável pelo novo olhar sobre uma pintora do século XVII de mérito reconhecido, Josefa de Óbidos (1630-1684). O sucesso atingido pelas suas obras contribuiu para que, quase involuntariamente, fosse apagada até recentemente a memória do seu pai e mestre, o pintor Baltazar Gomes Figueira (1604-1684).

Trata-se de uma “coisa inaudita na História da Arte portuguesa, à revelia do que sucedeu nas artes dos outros países”, destaca o historiador de arte Vítor Serrão, professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa.

Ao contrário do que genericamente sucedeu em muitos países, onde as mulheres-artistas foram subjugadas e menorizadas por artistas homens, em Portugal encontramos uma artista, Josefa, cuja fama junto dos seus públicos consegue ofuscar o protagonismo paterno, ou seja, uma situação inédita a nível internacional em situações congéneres.

A pintora, autora de uma vasta obra, que inclui uma série de célebres naturezas mortas, género onde recupera o gosto pelo descritivismo do naturalismo andaluz, bem como na ousadia das suas pinturas religiosas, onde rompe com o cânone tardo-maneirista estabelecido, segue a tendência de adesão dos valores da Contra-Reforma, e dá um sentido visual mais atraente à arte barroca. Trata-se, assim, de uma notável pintora da modernidade seiscentista, cujo estilo revela liberdade face ao estabelecido, com um encanto de pormenores domésticos e uma certa espontaneidade ingénua nas composições.

Josefa nasceu em Sevilha em 1630, filha do pintor obidense Baltazar Gomes Figueira, veio para Portugal com sete anos, viveu em Coimbra, Peniche e, sobretudo, em Óbidos. A inspiração do traço de Josefa deriva da obra de Baltazar, pintor estimado em Sevilha e com fama no seu tempo, uma época em que Portugal esteve em guerra com Castela durante 28 anos e, por isso, isolado dos grandes centros de produção europeus.

Baltazar Gomes Figueira proporcionou à filha Josefa escolaridade e educação artística possível, no seu atelier em Óbidos, onde ela começou como amadora em ambiente familiar, e mais tarde como pintora profissional. Josefa pintou regularmente desde os 16 anos, e aos 17 anos foi convidada a fazer a gravura da Sabedoria para os Estatutos da Universidade de Coimbra, em 1657. Com o consentimento dos pais, foi emancipada, o que lhe garantiu independência administrativa, e adquiriu rendas de propriedades.

Uma mulher emancipada no século XVII, como afirma Vítor Serrão, abria portas a outras dimensões de vida, em que se inclui a actividade pictórica para além da esfera amadorística. Josefa adquiriu fama pelo impacto do seu estilo muito pessoal, viveu solteira com as duas sobrinhas e criados em Óbidos e na Quinta da Capeleira, nos arredores da vila das senhoras Rainhas, casas que herdara por morte de seu pai, em 1674.

Com obras de méritos muito variados, mas que incluem, em alguns casos, algumas das melhores pinturas sacras do século XVII, a projeção de Josefa deveu-se ao seu estilo muito pessoal e à boa qualidade técnica (melhor que a média da pintura barroca devocional daquele tempo), imprimiu mais cor, o que deu um realce profano às imagens sagradas, torna-as mais humanas e familiares, conferindo uma maior liberdade nos movimentos.

É em pinturas como a Nossa Senhora do Pópulo da coleção do Museu do Hospital e das Caldas da Rainha, que Josefa de Óbidos revela, de forma sublime, o seu poder de criação, através da vivacidade das cores e do naturalismo das formas. Esta pintura, exposta no Museu do Hospital, é um óleo sobre tela, mede 110 cm x 76 cm, cerca de 1675-1680. Com os fundos, os panejamentos e a luz vai criar os relevos e ao mesmo tempo a procura de uma linguagem que tenha uma comunicabilidade com os olhos da alma, é a alma que vê. A rebeldia da pintora verifica-se “na mudança que introduz no cânone do ícone romano, colocando o Menino a comunicar connosco, olhando para nós, com a mão levantada”, refere Vítor Serrão.

Josefa surge-nos como uma mulher diferente que rompe com alguns padrões da época. Nos seus quadros de cunho espiritual, revela-nos uma “forte personalidade'’, marcada pela influência mística de Santa Teresa d’Ávila, segundo Margarida Varela, especialista na pintura de Josefa de Óbidos.

As telas de Josefa ganharam prestígio, também, com o elogio rasgado de vários autores da literatura, como Almeida Garrett ou o conde Raczynski.

Encontramos, assim, na História de Arte Portuguesa um caso de sucesso com a vida, obras e fama da pintora Josefa de Óbidos, uma mulher artista emancipada no século XVII, cujo valor continua hoje a ser reconhecido no mundo da Arte.

Sugerir correcção
Comentar