Brasil: Barrabás pode ser Presidente da República?

A ética republicana não permite afrouxamentos nem relativismos casuais. Barrabás até pode ter sido libertado por lamentável erro judiciário. Mas, mesmo livre, sempre será Barrabás, não estando alheio aos graves crimes cometidos no passado.

O Brasil tem o mau hábito político de renovar-se no vício. O cidadão – decente sério e trabalhador – fica desesperançado diante de tantos dissabores. O deboche é tão acintoso que os preceitos da honra se lançam em autoquestionamento: do que vale ser correto e ensinar honestidade a nossas crianças se, em nosso país, corruptos e corruptores fazem fortuna com a ilicitude, tendo na impunidade garantida a certeza de dias felizes? Tal pergunta é o retrato da grave e histórica desmoralização institucional brasileira.

Além de triste, é dilacerante. Os bons e decentes se sentem tolos, enquanto os canalhas posam de majestade. Ora, não há nação capaz de progredir com tamanha inversão de valores. Sem cortinas, enquanto a legalidade for relativa, a corrupção será absoluta. Na verdade, a lei foi feita para não funcionar no Brasil; procura apenas criar uma pueril miragem na imaginação dos brasileiros para que sonhemos com algum ideal de justiça. No entanto, a realidade é insistente em suas tristes cenas, revelando que a indecência política segue sendo uma marca de relevo em nossa combalida república.

Mas vamos lá, o caminho das nações nem sempre é fácil, exigindo tato e perícia nas sinuosidades do viver. Democracia é paciência e perseverança na defesa das causas do bem. Para tanto, jamais podemos abdicar do dever de falar a verdade, enfrentando, sem temor, as ficções e farsas inventadas pela política pequena. Aqui, a memória faz lembrar discurso histórico do saudoso deputado Raul Pilla que, em 6 de maio de 1957, subiu à tribuna parlamentar e fez ecoar que “ocasiões há, porém, que ainda num deserto, onde somente as pedras poderiam ouvir, é necessário falar, clamar e conclamar”, vindo a concluir a verve de estilo: “Não falo por falar, falo por dever; falo para que não digam que não ouviram, porque não houve quem falasse; falo sobretudo para ficar em paz com a minha consciência, a quem sempre obedeci e a que hoje, mais do que nunca, deve obedecer. A insânia parece dirigir a vida pública brasileira”.

Felizmente, 2022 é ano eleitoral, reabrindo a possibilidade de melhores quadros políticos e o consequente aperfeiçoamento das instituições. Para tanto, se faz necessário analisar a constitucionalidade de eventuais candidaturas imorais. Por exemplo, aqueles, já envolvidos em atos ou práticas de corrupção pretérita, teriam legitimidade constitucional para pleitearem o mandato popular? Em outras palavras, a natural dinâmica democrática, elevando a dignidade do povo e a honra das instituições, permitiria retrocessos atentatórios à ética e aos bons costumes? Ou será o estar na política um imperativo de probidade modelar?

As perguntas acima, por instigantes e não menos polêmicas, merecem ponderada análise. Inicialmente, cumpre destacar que a Constituição brasileira, além do marco legal máximo da Nação, é a norma ética da República. Por desiderato lógico-normativo, a constitucionalidade envolve uma simbiose formativa entre justiça teórica e razão prática, impondo aos agentes de poder o dever de fazer o certo e exaltar o justo. Por assim ser, a Lei Maior foi categórica ao impor a “legalidade” e a “moralidade” como princípios mandatórios da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (artigo 37 da Constituição).

Diante do categórico norte constitucional, aqueles que já praticaram erros políticos graves – homenageando a ilicitude ao invés da retidão de condutas – não dispõem de predicados morais necessários ao alto encargo da representação popular. Ao estabelecer a “filiação partidária” como condição de elegibilidade (artigo 14, parágrafo 3°, V), a Constituição brasileira impôs aos partidos políticos a tarefa fundamental de preparar e selecionar candidatos moralmente aptos ao exercício sério e decente da confiança outorgada pelo povo. Se os partidos falham ou são coniventes com candidaturas indignas, isso não significa que os imperativos éticos e jurídicos da Constituição perderam validade. Ao contrário, tal traição institucional dos partidos impõe aos órgãos de controle, em especial àquele encarregado pela guarda constitucional, o dever de tutelar a moral pública, coibindo manobras políticas espúrias com vistas a fraudar a ética e a dignidade democrática.

Ao versar sobre o conceito constitucional de inelegibilidade, a Lei Fundamental remeteu o dissecar da matéria ao legislador complementar, fazendo questão de realçar que a legislação tem por finalidade “proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (artigo 14, parágrafo 9.°). Portanto, (i) se determinada candidatura ensejar improbidade, haverá inelegibilidade potencial; (ii) se a vida pregressa do candidato indicar imoralidade, haverá inelegibilidade em curso; e, (iii) se houver traços substantivos de influência econômica indevida ou abuso de poder, também haverá inelegibilidade em potência.

Em precedente paradigmático, a colenda Suprema Corte já decidiu que “a ruptura dos vínculos de caráter partidário e de índole popular, provocada por atos de infidelidade do representante eleito (infidelidade ao partido e infidelidade ao povo), subverte o sentido das instituições, ofende o senso de responsabilidade política, traduz gesto de deslealdade para com as agremiações partidárias de origem, compromete o modelo de representação popular e frauda, de modo acintoso e reprovável, a vontade soberana dos cidadãos eleitores, introduzindo fatores de desestabilização na prática do poder e gerando, como imediato efeito perverso, a deformação da ética de governo, com projeção vulneradora sobre a própria razão de ser e os fins visados pelo sistema eleitoral proporcional, tal como previsto e consagrado pela Constituição da República” (STF, Pleno, j. 4/10/2007).

Como se vê, a “infidelidade ao povo” constitui aberta subversão das instituições republicanas, fraudando a legitimidade do voto popular. E não existe fraude política mais grave do que o estabelecimento de um sistema corrupto de poder. Objetivamente, a prática de corrupção ou a omissão em combatê-la configura imperdoável violação aos preceitos da decência e honestidade pública, ensejando governos imorais que, para fins de enriquecimento ilícito, usam e abusam da inocência do povo, divorciando-se da lei e da honra. Ora, além de repudiar o ilícito e a corrupção em todas as formas, a ética republicana impõe ao corpo político constituído o dever de otimização de condutas e contínuo aprimoramento institucional, impedindo a implantação de retrocessos danosos à democracia, à legalidade e aos costumes sociais.

Por tudo, a existência de uma ordem política proba, lícita e honesta é um dos mais caros direitos da cidadania democrática, inadmitindo-se retrocessos de qualquer natureza. Chega de compadrios ou composições de empreitada. A ética republicana não permite afrouxamentos nem relativismos casuais. Barrabás até pode ter sido libertado por lamentável erro judiciário. Mas, mesmo livre, sempre será Barrabás, não estando alheio aos graves crimes cometidos no passado. E, uma vez criminoso, de fato ou de direito, não pode ocupar a Presidência da República.

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