A política da “covid zero” é uma armadilha para a China?

O combate feroz a qualquer surto de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 e vacinas que não resistem à Ómicron estão a deixar a população chinesa muito vulnerável, alertam analistas.

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Os Jogos Olímpicos de Inverno vão ser marcados por medidas excepcionais anti-covid-19 ROMAN PILIPEY/EPA

Cerca de 11 mil pessoas, entre atletas e outros membros das delegações nacionais, e jornalistas, chegaram a Pequim para os Jogos Olímpicos de Inverno, que se iniciam a 4 de Fevereiro, e representam o maior desafio à estratégia de “covid zero” que a China é o único país a manter. E que, segundo vários especialistas, deixa o país de 1,4 mil milhões de habitantes especialmente vulnerável a um surto de covid-19 que consiga evadir-se às medidas de controlo draconianas postas em prática pelo Governo chinês.

Foram já detectados 200 casos de covid-19 entre as delegações olímpicas, reconheceu o Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022, diz a Reuters. No entanto, as milhares de pessoas que participam nos Olímpicos foram sujeitas a testes de PCR e vão viver, trabalhar e treinar em comunidades fechadas e separadas do público, numa “bolha sanitária”. Não lhes será permitido passearem pela capital chinesa.

Ao mesmo tempo, surgem surtos em diversos pontos da China causados pela variante Ómicron. Duas comunidades de Pequim foram seladas, impedindo contactos com o exterior. Quando surge um caso de covid-19, a reacção das autoridades é de máxima força: todos os habitantes ou pessoas que se encontram numa cidade são mantidas em quarentena profiláctica dentro das habitações – por vezes mesmo dentro de lojas ou locais de trabalho – e toda a gente é testada, para despistar o vírus SARS-CoV-2, e é feita uma investigação aprofundada para descobrir a origem do surto.

É o mesmo combate radical ao vírus que se viu no início da pandemia, em Wuhan: todo um aparelho securitário é posto em prática. O objectivo é eliminar os focos do vírus, para tentar garantir que a sociedade não tem de conviver com o risco de infecção – a chamada estratégia “covid zero”.

Inicialmente a mesma política foi aplicada por outros países asiáticos, pela Austrália e pela Nova Zelândia, mas abandonaram este caminho, à medida que aumentava a percentagem da população vacinada. Hoje estão alinhados com os países do Ocidente, onde se aposta nas campanhas de vacinação em massa para que seja possível começar a viver com o vírus SARS-CoV-2 sem ser numa urgência permanente.

Falta de imunidade

No entanto, a política de “covid zero” permitiu a Wu Zunyon, do Centro para o Controlo e Prevenção das Doenças chinês, declarar em Novembro de 2021 – quando a variante Ómicron estava a surgir –, que a estratégia “covid zero” tinha permitido evitar até 200 milhões de infecções na China e três milhões de mortes, recorda, num artigo na revista Foreign Affairs, Yanzhong Huang, especialista em saúde global do Council on Foreign Relations.

Mas um dos pilares para a protecção da população chinesa assenta em terrenos movediços. É certo que a China vacinou em massa a sua população. No início de Janeiro, Zhong Nanshan, o médico que é o rosto da campanha de vacinação contra a covid-19, anunciou que 83% da população tinha duas doses de uma das vacinas chinesas (as únicas autorizadas). “Teoricamente, a China alcançou a imunidade de grupo”, afirmou.

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Preparação de um centro de testes de covid-19 em Pequim WU HONG/EPA

Mas várias equipas científicas mostraram recentemente que as vacinas chinesas dão uma protecção limitada contra a variante Ómicron. “Isto quer dizer que não dão imunidade protectora adequada a uma população em que não existe imunidade natural devido a infecções”, sublinham, num artigo de opinião no New York Times, Ezekiel Emanuel e Michael Osterholm – o primeiro é professor de ética e políticas de medicina na Universidade da Pensilvânia e o segundo dirige o Centro para a Investigação e Políticas de Doenças Infecciosas na Universidade do Minnesota (EUA).

A falta de imunidade natural deve-se ao sucesso da política de “zero covid”, explicam Emanuel e Osterholm. “Sim, a China aguentou bem a pandemia até agora. Mesmo tendo quatro vezes a população dos Estados Unidos, a China tem menos de 140 mil casos confirmados e menos de 6000 mortos desde Janeiro de 2020, de acordo com os números da Organização Mundial da Saúde”, escrevem. “Tudo isto parece um enorme sucesso se comparado com a confusa e por vezes caótica resposta ao vírus dos EUA, onde morreram mais de 860 mil pessoas, e morrem todos os dias cerca de 2000”, reconhecem. “Mas este pode ser o futuro da China. A política de ‘covid zero’ pode vir a revelar-se um grande erro, porque deixa o país muito impreparado para o que será a covid-19 endémica”, concluem.

Vejamos a questão das vacinas. A China não tem vacinas de ARN-mensageiro, que são as que no Ocidente se têm revelado mais eficazes contra o vírus SARS-CoV-2 – embora haja investigação para as desenvolver. As vacinas usadas são do tipo de vírus inactivado, de forma a não causar infecção, produzidas pela Sinopharm e pela Sinovac.

Ómicron bate vacinas

Três estudos publicados recentemente indicam que as vacinas chinesas, sobre as quais já havia algumas dúvidas sobre a sua eficácia, não foram uma barreira muito eficaz contra a variante Ómicron.

Um deles, feito por investigadores de Xangai, mostrou “uma redução significativa” da eficácia de uma terceira dose da vacina da Sinopharm perante a Ómicron, quando comparada com outras variantes do vírus.

Outro estudo, feito por cientistas de Hong Kong, mostrou que três doses da vacina Sinovac não produzem anticorpos suficientes para fazer frente à infecção pela Ómicron.

Finalmente, um terceiro estudo (que ainda não tem revisão pelos pares), feito por cientistas do Ministério da Saúde da República Dominicana e cientistas norte-americanos – como a muito conhecida imunologista Akiko Iwasaki, do Instituto Howard Hughes – indicou que países que começaram a administrar a vacina da Sinovac às suas populações podem continuar a ter problemas mesmo que dêem uma dose de reforço de outra vacina, como a da Pfizer-BioNtech. Nesse caso, a protecção é equivalente a ter recebido apenas duas doses da vacina da Pfizer-BioNtech, o que não é suficiente para travar a infecção pela Ómicron.

“Por causa da baixa taxa de eficácia das vacinas chinesas, em particular contra a Ómicron, a maior parte das pessoas na China ainda não tem a quantidade de anticorpos neutralizantes suficientes para prevenir a infecção” pelo vírus SARS-CoV-2, diz Yanzhong Huang. “Em combinação com a estratégia de ‘covid zero’, o resultado paradoxal deste esforço de vacinação ineficaz foi tornar a população chinesa mais vulnerável à covid-19 do que quase qualquer outra no mundo”, conclui.

Com a variante Ómicron, há surtos em pelo menos 20 províncias. Xian, uma cidade de 13 milhões de habitantes, teve o pior surto desde Wuhan, com 2000 casos, e foi posta de quarentena entre 23 de Dezembro e a primeira semana de Janeiro. A cidade de Tianjin, que fica a 30 minutos de Pequim numa ligação de comboio de alta velocidade, registou pelo menos 300 casos de covid-19. “Com os Jogos Olímpicos a apenas alguns dias, a China nunca pareceu estar tão perto de uma vaga explosiva de covid-19”, escreveu Yanzhong Huang.

Há então alguma probabilidade de a China abandonar a política de “covid zero”, ou deixou-se apanhar numa armadilha de que não é fácil sair? “Na ausência de mecanismo eficaz para medir as reacções à sua política, o Governo chinês pode não perceber que já chegou a um momento em que deve inflectir [a estratégia]”, diz Yanzhong Huang. “O que parece provável é que a Ómicron se espalhe pelo país, forçando uma ruptura no sistema, ainda que assistamos a uma série de confinamentos repressivos”, vaticina o analista.

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