A indiferença é o que nos mata

René Robert, o homem, o artista, o amigo de muitos, saiu de casa, no dia 19 de Janeiro, em direcção à Place de la République, no centro de Paris. Ter-se-á sentido mal no caminho e desmaiou. Caiu, inanimado, no meio da rua. E o que se sabe é que assim terá ficado, caído e abandonado, numa fria noite de Inverno, durante nove horas.

Foto
DR\UNA - INSTITUT NATIONAL DE L'AUDIOVISUEL

Conheci René Robert, fotógrafo, precisamente no dia em que escrevo estas linhas, sábado 29 de Janeiro de 2022. Segundo aquilo que dizem as notícias que vou lendo aqui e ali, René Robert era um artista. Era fotógrafo e tinha uns venerandos 84 anos. Aprendi que René Robert era natural da Suíça, fez carreira na publicidade e na moda mas tornou-se famoso ao fotografar artistas de flamenco.

Assumi, antes de mais, a minha ignorância no que diz respeito ao artista René Robert. Como disse, conheci-o agora e não foi pelos melhores motivos. Como tal, deverão já ter percebido que não venho falar de René Robert pela sua obra enquanto artista. Venho, sim, falar-vos do fim da vida deste artista que, no dia 19 de Janeiro, se cruzou com a morte numa rua de Paris.

René Robert, o homem, o artista, o amigo de muitos, saiu de casa, no dia 19 de Janeiro, em direcção à Place de la République, no centro de Paris. Ter-se-á sentido mal no caminho e desmaiou. Caiu, inanimado, no meio da rua. E o que se sabe é que assim terá ficado, caído e abandonado, numa fria noite de Inverno, durante nove horas. O triste final desta história já será claro mesmo para aqueles que não ouviram esta notícia durante o fim-de-semana. René morreu de hipotermia.

Essa será a explicação que ficará para a história. Será a explicação que será recontada aos nossos vindouros. Mas essa não é a verdadeira explicação. Aquilo que matou este artista foi a indiferença dos muitos que por ele passaram e que não se deram, sequer, ao trabalho de parar ou, no mínimo, de chamar uma ambulância. Perceber isto é, no mínimo assustador. É impossível não pensar: “E se fosse eu? Será que perante a imagem de um idoso caído no chão teria tomado uma providência ou apenas teria passado, olhando para o lado, ignorando que uma vida humana estava ali caída?”

Eu quero acreditar que não o teria feito mas também não consigo acreditar que todos aqueles que por ali passaram fossem desprovidos de qualquer sentimento bom. Nas minhas leituras sobre o assunto, ficou-me uma frase na memória: “Os transeuntes, acreditando tratar-se de um sem-abrigo, não pararam para o ajudar…” Como pode alguém considerar que essa é uma possível explicação? Podia ser um sem-abrigo, podia estar alcoolizado, logo não era merecedor da ajuda de que necessitava urgentemente?

Tudo isto só se explica, a meu ver, por sermos cada vez mais uma sociedade que vive virada para si própria e para os seus problemas. O resto é-lhe indiferente. Atrever-me-ia a dizer, mesmo, que a indiferença se tornou algo de natural em nós. O facto de estarmos expostos, diariamente, às mais variadas formas de violência, de pobreza, de sofrimento, criou em nós uma capa de insensibilidade que nos faz olhar para todos os dramas no mundo de um modo desinteressado, como se os mesmos fossem banais.

Todos os dias somos bombardeados com informações sobre desastres, mortes, fome, sofrimento. Isso tudo enquanto jantamos, confortavelmente sentados, em ambientes seguros e aquecidos. Claro que fazemos o nosso ar condoído, claro que ficamos parados, por vezes em silêncio a ver aquelas imagens que, por momentos, nos incomodam. Contudo, rapidamente nos recompomos, pensamos, para aliviar a nossa mente, que, quando for possível iremos contribuir para alguma causa social, ajudar o Banco Alimentar e, sem mais delongas, pediremos à pessoa que está mais próxima de nós que nos passe o molho para as batatas. Precisamos dessa fria indiferença para continuar a viver neste mundo cada vez mais cruel. Precisamos de sentir alguma apatia que nos tornará impassíveis e imperturbáveis perante o sofrimento que nos rodeia. Criámos, assim, uma capa de imunidade perante o sofrimento alheio.

A indiferença é um sentimento que magoa. Ela passa uma mensagem, difícil de aceitar, que é “Eu não me importo contigo. Não me importo com os outros”. E essa mensagem ficou bem clara para René Robert. Ninguém se importou com ele, durante nove horas. A morte encontrou-o, sozinho, naquela noite gelada, sem que ninguém sentisse o imperativo de chamar uma ambulância.

Curiosamente, ou não, foi um sem-abrigo quem alertou os bombeiros, às 6h30 da manhã, da presença inanimada naquela rua de Paris. Provavelmente, foi alguém que está habituado a ser ignorado pelos transeuntes, quem sentiu a necessidade de fazer alguma coisa por aquele homem, numa rua cinzenta, numa manhã gelada. Infelizmente, foi demasiado tarde.

A indiferença e apatia apoderaram-se de todos nós enquanto seres humanos. E é essa indiferença que nos mata.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários