Bem-aventurados os que choram porque António Costa liderará

Makas de uma angolana 12 Se dúvidas houvesse sobre se há um elefante aos saltos numa loja de porcelanas chamada Portugal, pois agora a resposta está à tona: há e já não salta sozinho.

Longe estava em fazer deste espaço, que o Público online simpaticamente apoia, uma sucessão de artigos de opinião acerca da vida política de Portugal. Mas vivendo eu neste país desde os meus 16 meses, aqui tendo aprendido a ler e a escrever, aqui ter frequentado os ensinos preparatório, secundário e superior com sucesso, ter feito amigos, quiçá inimigos, ter tido experiências de vida inolvidáveis com sucessos e com insucessos – porque errar também faz parte do processo pedagógico – entendi que não podia enterrar a cabeça na areia e, enquanto cidadã portuguesa por jus sanguinis, deixar de usar este espaço, onde não registo censura ou imposição, para exprimir a minha profunda repugnância pelo líder de um partido de extrema-direita que, justificando os meus piores medos, conseguiu levar às urnas 385.559 dignos eleitores que votaram em território continental e insular movidos por um apelo de provocar erisipela, como me recordo de ter ouvido de uma comentadora por estes dias.

Num discurso que não foi só num crescendo de mal-educado a funesto, mas que também teve como reverso o de materializar em números, mais precisamente na até agora conhecida soma de 385.559, o quanto de intolerância, misoginia, falocentrismo, racismo, xenofobia, homofobia e ódio existe em Portugal.

Se dúvidas houvesse sobre se há um elefante aos saltos numa loja de porcelanas chamada Portugal, pois agora a resposta está à tona: há e já não salta sozinho. A ele juntaram-se mais onze elefantes aos saltos enfileirados que rapidamente derrubarão não só os mais preciosos objetos de arte produzidos em território nacional ou retirados a outros territórios na altura extensões do então império, como também derrubarão a coesão social colocando portugueses de solo e sangue contra portugueses de solo e sangue, portugueses de solo e sangue ou só de solo ou só de sangue contra portugueses que não são de solo ou que não são de sangue, mas que são cidadãos de Portugal com os mesmos direitos e deveres que lhes confere o tal 13.º Artigo da Constituição Portuguesa que legisla sobre o Princípio da Igualdade.

André Ventura e o Chega elegeram 12 deputados à Assembleia da República (no momento em que escrevo este artigo estão por apurar os votos dos círculos da emigração) por 385.559 eleitores sufragados.

Estes 12 assentos serão os lugares mais mal frequentados de sempre em São Bento que, espante-se, numa República Constitucional laica, ainda que socialmente enraizada numa matriz católica apostólica romana, apagou da fotografia o único partido democrata-cristão, o CDS-PP, partido fundador desta III República e que, a meu ver, candidatou-se a estas legislativas com um líder, Francisco Rodrigues dos Santos, detentor de ambos quocientes, de inteligência e emocional, bem acima da média de qualquer um dos 12 assentos já a tresandar a naftalina acabada de desenterrar da velha mala de cartão enfiada no sótão de um qualquer dos pré-fabricados de onde saiu toda a pífia de futuros deputados da nação que em semanas formará um grupo parlamentar democraticamente eleito por, é preciso não esquecer os números, 385.559 dignos eleitores.

E assim Portugal está perante si próprio, a ver-se ao espelho, obrigado a reconhecer o que não quer. Que não gosta do país que é – o tal dos bandidos, terroristas, pedófilos e corruptos acerca de quem André Ventura verborreia – que não gosta dos portugueses que tem – os tais 50% de encostados a viver à custa da outra metade com o país às costas, pois foi exatamente assim que André Ventura fez questão de se referir aos seus conterrâneos, adjetivando-os de maioritariamente preguiçosos, indolentes, néscios, subsídio-dependentes e apáticos – que despreza as mulheres incluindo as suas – a com quem André Ventura é casado, mas a qual rapidamente abandonou no salão de festas logo na primeira hora de cantar vitória, mais a que inscreveu no onze por ele escolhido, uma mulher que se assume como antifeminista (?) – que odeia as minorias étnico-raciais – espera-nos um longo e tortuoso caminho de onde florirão grupos de cabeças-rapadas e chefes de família ávidos por pôr os pretos num barco sem fundo e zás, “volta para a tua terra” – que a tudo isto juntou um fervor homofóbico que André Ventura jorrou contra uma “direita mariquinhas”.

Foi tudo isto que Rui Rio, na sua interpretação de Rioconda, destapou, trocando os seus 27% por uma inevitabilidade à qual Catarina Martins soube dar voz no seu último discurso, diga-se de passagem que um bom discurso para uma líder na porta da saída: a de que há um grupo parlamentar constituído por cidadãos racistas e xenófobos que não só está sentado no hemiciclo, mas, acrescento eu, estende-se bem acomodado em cada mesa do café da esquina, em cada sofá por cima do andar onde mora, ao lado da sua secretária de trabalho, dentro da Igreja onde reza, no concerto a que assiste, na mesma fila da sala de aulas onde deixa os seus educandos – e se esta tradução em atos não é sinónimo de racismo institucionalizado, estrutural e enraizado o que é que é então?

Rioconda não quis ver, limitou-se a sorrir (ninguém sabe se de si se dos outros). Perdeu o respeito que conquistou nestes últimos dois anos ao nos deixar à deriva, ao colocar em banho-maria o que faria com os tais portugueses que, trabalhando, ainda assim vivem no limiar da pobreza. Voltou as costas a nós, às minorias que nunca o hostilizámos e acabou a falar sozinho, sem que nem Merkel nem Scholz perdessem tempo a ouvi-lo, pois estes deram o exemplo ao negaram-se redondamente a servir quer copos meio cheios quer copos meios vazios à AfD.

Mas há um otimista irredutível a provar-nos ser um grande homem, um grande filho, um grande marido, um grande pai, um grande cidadão e um enorme líder político.

Senhor Primeiro-Ministro António Costa, receba esta humilde, sincera e um tanto ou quanto singular manifestação de gratidão. Sabendo-o agnóstico é comprovado ser um homem de bem. Por si poderemos continuar com a certeza de que a nós, bem-aventurados pacificadores, as fragilidades não impedirão de, pela sua mão, avançar.

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