A engenhoca

Por mais estranho que isso pareça, o Partido Socialista tem agora a oportunidade de reeditar o risco e, à semelhança da engenharia de convergência de 1989, atribuir cargos ministeriais e responsabilidade a um partido que ficaria refém do próprio modelo de governação.

O nosso erro consiste em pensar que nunca fazemos nada contra a vontade. Há não muito tempo, uma petição sugeria um entendimento de esquerda semelhante àquele que tivemos antes do chumbo do OE. A tempestade recente tornou o terreno menos sólido, mas talvez mais fecundo. Não assinei a petição: não porque não achasse a solução desejável, mas por sentir na petição o constrangimento do pedinte: pedinchar. Não seria mais natural e decente serem os nossos eleitos a pedir-nos linhas de governação? Ter-se-ão cansado de andar às nossas costas?

Que diferença faz, portanto, que escolhamos ou desprezemos os candidatos, se, em ambos os casos, o resultado é o mesmo, isto é, se os entendimentos acontecem sem nós e depois de nós? O facto é que votamos contra vontade, inteiramente entregues e dedicados a indivíduos de natureza instável e que, no momento de fazerem as contas (depois da contagem das urnas), e sob um mal explicado mercenarismo de última hora, renunciam à nossa pretensão. Por aqui se vê bem a nossa estupidez. Mas também a nossa complacente boa-vontade. A isto chama-se confiança.

Não deve ser ignorado o período em que, em 1989 (uns meses antes da queda do “muro”), Jorge Sampaio inaugurou uma convergência de esquerda sem precedentes. Mas não foi apenas isso que inaugurou. Ao fazê-lo, lembrou que certo indivíduo inflexível, um tal Cunhal de quem se dizia não ser de confiança, era não apenas fiável, mas de palavra, e que o PCP, entendido como um partido que colocava os outros em perigo, poderia ser acusado de tudo, menos de desonestidade. Na altura, as palavras fascismo e comunismo exprimiam, em direcções opostas, algo de indesejável, perigoso e recente. Por isso mesmo, a inédita experiência da Câmara Municipal de Lisboa foi muito arriscada. Só que há riscos e riscos e, na altura, Sampaio sabia que o maior deles seria entregar a câmara a Marcelo. Em tais circunstâncias, o distanciamento não era possível. Foi mérito de Sampaio. Mas também dos comunistas.

Digam o que disserem agora as sondagens (e até ao acto eleitoral alguém se encarregará de aproximar os dois maiores partidos pela margem mínima), não passarão de bazófias destinadas à docilidade de certa franja social do país, incapazes de acertar no tabuleiro que se avizinha. As combinações são várias, mas a algumas move-as a ordem constante do mais recente destino: se o PS for, como se supõe, o partido mais votado, qualquer entendimento à direita só poderá ser entendido como uma fraqueza de carácter imperdoável. Deixará marcas indeléveis nos socialistas e haverá sempre quem, dentro do partido, possa dizer “se precisarmos de um bobo para nos divertirmos, basta troçarmos de nós mesmos”.

O comatoso arrastamento final da “geringonça” pode ter querido significar que não seria possível governar a três velocidades, porque, à esquerda do PS, dois partidos, ainda que nas suas diferenças, roubaram (e roubam) as forças um ao outro. E tem de se admitir que um deles fez muito mais por encostar o governo às cordas. Por mais estranho que isso pareça, o Partido Socialista tem agora a oportunidade de reeditar o risco e, à semelhança da engenharia de convergência de 1989, atribuir cargos ministeriais e responsabilidade a um partido que ficaria refém do próprio modelo de governação. E com isto combina-se algo que é sempre menosprezado pela direita: que, entre socialistas e marxistas, ninguém se dá conta da própria avareza de ideias, se o denominador comum for a eliminação dos privilégios de classe. Seria uma “engenhoca” que, a ser bem-sucedida e apelando a uma disciplina de confiança, evitaria o imbróglio de negociar “diploma a diploma”.

Uma outra conta seria o PSD vencer as eleições e necessitar dos seus entendimentos. Mas esse, a julgar pelas infalíveis sondagens, seria um presente envenenado. Além de que uma coligação de direita, crente na meritocracia, na desigualdade social e na adoração do poder, dificilmente responderia à bela pergunta do grande Aneu: “Que me importa saber como lotear um terreno se não sei dividi-lo com o meu irmão?”

Quanto ao resto, tudo está entregue aos jornalistas e às “torradeiras com imagens” do Mark Fowler.

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