Neoliberalismo à portuguesa (I)

O propósito deste neoliberalismo à portuguesa passa não só por perpetuar, mas também por ampliar, o domínio de uma classe através da eliminação de todos os direitos e protecções sociais. É uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há.

As eleições de 2022 representam um marco histórico para o neoliberalismo português. De facto, esta é a altura ideal para estudar a Iniciativa Liberal (IL). Ou seja, após ter elegido um deputado e no momento em que procura conciliar uma ideologia elitista com ambições de crescimento, o IL não conseguiu ainda discernir com clareza absoluta entre as propostas que devem ser (por agora) abandonadas, aquelas que podem ser ocultadas através do recurso a linguagem metafórica, e as que merecem plano de destaque.

Um dos exemplos de projecto arquivado é a proposta de obrigar os estudantes universitários a financiarem os seus cursos, o que não constitui surpresa se recordarmos que Carlos Guimarães Pinto já tinha criticado a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano como um desperdício de recursos e um ataque à “liberdade de escolha” das famílias. É um recuo táctico, mas a intenção de quebrar o único elevador social funcional em Portugal é mantido. Em suma, é o ciclo em que o purismo ideológico casa com o pragmatismo táctico.

Já as metáforas e chavões servem para camuflar não só a indigência intelectual de Guimarães Pinto e outros, como também políticas mais impopulares. Vamos por partes. Não obstante a narrativa neoliberal de um país a caminhar para a autocracia, o respeito pela liberdade é consensual no espectro político democrático. Portanto, quando o termo liberdade é repetido até à exaustão por uma força política emergente é porque esta procura imprimir-lhe um conceito novo ao mesmo tempo que tenta aproveitar-se da unanimidade em torno da definição clássica. Quem, afinal, é contra a liberdade?

Mas, que “liberdade” é esta que os neoliberais vêem como estando sob ameaça constante? Numa das raras ocasiões em que um militante da IL se viu obrigado a clarificar um chavão (o significado de “visão liberal para a Presidência da República”), Tiago Mayan apresentou os estados de emergência como um assalto à “liberdade”. Faltou adicionar o óbvio, que uma sociedade democrática implica um equilíbrio entre o bem comum e a liberdade individual. No entanto, os neoliberais rejeitam conceitos tão básicos como o de justiça social – “uma miragem”, segundo Hayek – e da sua ausência cercear a liberdade de muitos, incluindo o direito à vida.

Para melhor definir a concepção neoliberal de “liberdade” (por isso o uso de aspas), é importante revisitar os seus alicerces ideológicos. O neoliberalismo assenta numa série de pressupostos simples. O primeiro é o de que todos os humanos são seres egoístas que apenas seguem os seus interesses. Importa realçar que os neoliberais não vêem isto como uma teoria mas antes, segundo Cotrim de Figueiredo, como o âmago da “natureza humana”. Que tal premissa tenha sido refutada por psicólogos sociais é imaterial.

O segundo pressuposto é o de que o mercado livre é o local onde todos estes interesses confluem e se digladiam, resultando numa harmonia perfeita. E, porque o mercado é livre, qualquer ingerência no mesmo constitui um ataque à “liberdade”. A conclusão lógica, segundo Hayek, é a de que uma elite assume o poder, substituindo-se à democracia, mas salvaguardando a “liberdade”.

Menos explícito que Hayek mas igualmente dogmático, Cotrim de Figueiredo afirmou num debate televisivo que a proposta da IL de abolir o salário mínimo nacional e substituí-lo por um salário mínimo municipal é de elementar justiça porque a situação actual limita a “liberdade” dos municípios. Ficámos a saber que os municípios se tornaram indivíduos merecedores de liberdades. Ficou também claro que a “liberdade” é, ao mesmo tempo, uma palavra elástica, para ser utilizada de forma cínica, mas também um termo cuja definição é bastante rígida: a “liberdade” é a económica e esta é absoluta. Não há bem comum ou outras liberdades que possam restringi-la.

Em vez de relembrar o trivial, tal como o facto de que existem áreas da sociedade que devem ser guiadas pela procura do bem comum e não pelo princípio do lucro, ou até mesmo recapitular os inúmeros exemplos práticos da falência da doutrina da infalibilidade do mercado, creio que será mais elucidativo expor o argumento da IL para a existência de “falhas de mercado”. Importa sublinhar que este é um conceito em tudo nebuloso excepto no facto de estas “falhas” não serem sistémicas e que a culpa última é sempre do Estado: ou porque interferiu no mercado ou porque não cumpriu a sua função de regulador, isto apesar de a IL afirmar que o “mercado é, ele próprio, uma forma de regulação, assente numa lógica de Liberdade”​.

As soluções são absurdamente fascinantes. Por exemplo, a corrupção deve ser combatida privatizando e desregulando ainda mais, porque a corrupção existe apenas na esfera do Estado. E isto tudo é a definição de uma ideologia extremista: simplista, dogmática, radical, absoluta e impenetrável a qualquer lógica.

Falta clarificar um termo: o Estado. Para os neoliberais, o Estado é simultaneamente uma abstracção e uma ameaça real – a maior de todas – à “liberdade”. Ora, numa democracia, o Estado somos nós. Para ser mais preciso, é a estrutura administrativa do país, tutelada por um governo eleito através de sufrágio universal. É o único garante, se bem que falível, de que a vontade popular é respeitada. É também a maior salvaguarda, mesmo que frágil, de que uma oligarquia económica não transforme as relações laborais em relações feudais. E é precisamente por constituir uma ameaça a esta “liberdade” que é tão odiado.

Esta mundivisão extremista é explanada com particular clarividência na hora das derrotas. Como racionalizar a rejeição desta não-ideologia, desta simples materialização política da “natureza humana”? Qual, então, a causa para a derrocada do neoliberalismo suave do PSD nas eleições autárquicas de 2017 (o então presidente da IL negava, em 2018, que o governo passista tivesse sido “liberal”), ou a mais recente derrota de Paulo Rangel nas eleições internas do partido após ter sido ungido como vencedor antecipado pelo comentariado neoliberal? Segundo o mesmo, só existem duas leituras possíveis: ou a mensagem “liberal” foi mal transmitida ou o público é asinino. Libertos de constrangimentos eleitorais, ressurgem os preconceitos de classe.

Entre as primeiras declarações de Cotrim de Figueiredo após as legislativas de 2019 consta esta pérola: “O PS sabe que mantendo um país amorfo e resignado tem um grupo de pobres, desesperados e dependentes do Estado que lhe irão dar o voto. A pobreza de muitos é o que segura o PS ao poder.” Resumindo, os pobres são irracionais e vivem alegremente da caridade, por isso é que votam em quem os mantém na penúria. É a explicação possível da parte de quem julga que resolve a miséria abolindo o salário mínimo nacional e acredita que basta omitir tal medida do sumário do seu programa eleitoral para ludibriar as massas embrutecidas.

A soberba de Cotrim de Figueiredo é, contudo, compreensível. Nunca, nos cinquenta anos da democracia portuguesa, houve um partido tão pequeno que usufruísse de tanta notoriedade pública, podendo contar com apoio explícito de vários comentadores televisivos, cronistas e até de um jornal. Aliás, o Observador encarna várias das contradições do neoliberalismo: um jornal cujo valor supremo é a “liberdade” mas onde todos os cronistas são de direita; onde reina a meritocracia, mas onde muitos desses colunistas possuem um trajecto profissional medíocre; um jornal que promove a civilidade, mas onde abundam visões apocalípticas de um país a resvalar para o comunismo; e onde a noção de génio consiste em citar acriticamente os ideólogos do neoliberalismo como se de uma verdade divina se tratasse. O recurso constante a elogios mútuos e a argumentos de autoridade desvelam mais outra contradição: o corporativismo de classe.

E isto leva-nos para a última questão. O propósito deste neoliberalismo à portuguesa passa não só por perpetuar, mas também por ampliar, o domínio de uma classe através da eliminação de todos os direitos e protecções sociais. É uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há. Se antes existia o direito divino dos reis, e isso bastou até ao século XIX, hoje temos um neoliberalismo que resiste até à sua declaração de óbito.

Confrontado com a crise de 2008, Alan Greenspan, o então chefe da Reserva Federal norte-americana, afirmou que a sua ideologia tinha falhado. Pode parecer anacrónico que este credo reentre no panorama político nacional em 2022. Mas não é, porque estamos perante o projecto político de uma classe que, cinco décadas após o 25 de Abril, acredita que a democracia foi longe demais em termos de justiça social e económica, e que é necessário um “PREC liberal”.

Parafraseando o título de um livro assinado pelo primeiro presidente da IL, Obrigado pela democracia, agora queremos liberdade. Para o neoliberalismo à portuguesa chegou a hora de substituir a liberdade pela “liberdade”.

Rúben Leitão Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham

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