Lucy, a mulher que recusou entrar no basquetebol dos homens

Lusia Harris fez pouco no basquetebol, mas fez muito pelo basquetebol. Se hoje as mais talentosas basquetebolistas do mundo podem jogar numa Liga forte e organizada como a WNBA, muito devem a Harris – e, provavelmente, a maioria nem saberá que é para com esta mulher que têm a dívida.

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Lusia Harris Twitter USA Basketball

O mundo perdeu nesta quarta-feira a única mulher a ter estado realmente perto de questionar, com o talento, por que motivo só homens poderiam jogar na Liga Norte-americana de basquetebol profissional (NBA).

Numa fase em que se pede igualdade entre as vertentes feminina e masculina em diversas modalidades, Lusia Harris morreu aos 66 anos com a honra de ter sido a primeira e única mulher a ser oficialmente escolhida num draft da NBA.

“Consegue imaginar uma mulher a competir no concurso de afundanços da NBA? Ou a defender Julius Erving no um contra um? Porque não?”. Esta pergunta vinha numa página de jornal em 1977, nos Estados Unidos, no dia seguinte aos New Orleans Jazz romperem os protocolos, usando a 137.ª escolha do draft para convidarem a então jovem da universidade de Delta State, Lusia Harris, a juntar-se à equipa profissional masculina.

Em 1977, ainda não existia a WNBA, vertente feminina do melhor campeonato de basquetebol do mundo, e a basquetebolista que liderou Delta State a três títulos nacionais – e ainda hoje é recordista de pontos e ressaltos da universidade – acabou por nunca actuar na NBA e nem sequer chegou a integrar os trabalhos de pré-temporada dos Jazz.

“Joguei contra homens na universidade, mas não estou habituada a jogar com homens nos campeonatos profissionais. Eu tenho 1,90, mas há lá gente com 2,10”, justificou a atleta na altura, citada pelos jornais.

Disse “não” à NBA

A explicação considerada como verdade absoluta foi também a gravidez da atleta, que queria constituir família, mas um documentário recente sobre a vida de “Lucy” deu à própria a possibilidade de alongar a explicação.

“Pensei que era uma jogada de publicidade e senti que não era suficientemente boa. Então, decidi não ir. Disse ‘não’ à NBA e não me arrependo de não ter ido. Nem um pouco”, apontou.

Esta é uma frase tremenda vinda de quem, por ter recusado esse convite, ficou na sombra da história do basquetebol. “Se eu fosse um homem, teria havido opções para eu ir mais longe a jogar. Teria, seguramente, ganho dinheiro e poderia ter feito muita coisa que gostaria”, disse ainda a atleta que acabou, após a carreira, por ter cargos de treinadora em universidades.

No plano basquetebolístico não é fácil ter referências de Lusia Harris. Uma ex-colega de equipa dizia no documentário que Lucy era especial do alto dos seus 191 centímetros. “Era especial, porque fazia tudo. Assistia, ressaltava, saltava, bloqueava lançamentos… era dura”.

Harris teve em 1992 a honra de ser a primeira mulher negra a entrar no Hall of Fame da NBA e entrou também, oito anos depois, para a vertente feminina desse quadro de mérito.

Apesar destas distinções, não será injusto dizer que Lusia Harris fez pouco no basquetebol, mas fez muito pelo basquetebol. Se hoje as mais talentosas basquetebolistas do mundo podem jogar numa Liga forte e organizada como a WNBA, muito devem a Harris – e, provavelmente, a maioria nem saberá que é para com esta mulher que têm a dívida.

Harris abriu-lhes a porta, mas nunca a ultrapassou por si própria. O The Athletic escrevia nesta quarta-feira que entre ganhar dinheiro, ser famosa e fazer história, Harris só conseguiu a última destas coisas. Fê-la dentro de portas, com a escolha no draft da NBA, mas também para o mundo, nos Jogos Olímpicos 1976.

Em Montreal, o torneio de basquetebol feminino foi uma estreia e Lusia Harris marcou os primeiros pontos do primeiro jogo de sempre em Olimpíadas. Mais do que esse detalhe, ajudou, com o seu talento e das demais colegas de “profissão” (com muitas aspas), a que a modalidade impressionasse a organização ao ponto de se manter nos Jogos até aos dias de hoje.

Numa Era em que os recordes mais antigos vão sendo batidos, Lusia Harris não tem pudor em “bater no peito” e puxar algo para si: “Esse [primeiros pontos nos Jogos] é um recorde que nunca será batido”.

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