Descolonização da cultura: do contexto à inevitabilidade

A maturidade de um país também se mede pela forma como este é capaz de dialogar com o seu passado. Deveríamos ser todos um pouco mais sérios, interrogarmo-nos sobre o que outros países europeus estão a fazer e se podem estas propostas ser aplicadas em Portugal.

Nos recentes debates televisivos surpreenderam-me os argumentos usados por alguns adversários políticos do Livre para criticar a inclusão, no seu programa eleitoral, de uma proposta de “descolonização da cultura”. Se, por um lado, seria perfeitamente razoável que se questionasse o modo, ou seja, como o pretendem fazer (tencionam retirar estátuas, alterar nomes de ruas, repatriar património) e os respetivos critérios, por outro, parece-me incorreto afirmar-se que descolonizar a cultura signifique rescrever a História ou se trate de uma reivindicação exclusiva de uma determinada ideologia. Não é assim tão linear. Estamos a falar de uma temática debatida em vários países e continentes; complexa, diversa e com várias matizes e pontos de conflito. Se é verdade que tem gerado alguns momentos de tensão e confronto, existem também algumas propostas para integrar a descolonização da cultura de forma mais criteriosa e equilibrada, caso de autores como Zadie Smith, John MacWhorter ou Fidel Sepúlveda.

O debate público e político sobre a descolonização cultural leva já algumas décadas no continente americano, em particular a norte (sobretudo a partir dos anos 70), mas ultimamente também a sul (com um impacto mais evidente a partir de 2000), e na Oceânia, onde este processo se tornou extremamente natural na Austrália e Nova Zelândia. Sendo que, no caso europeu, ocorre também há alguns anos em determinados países, tornando-se mais mediático a partir do famoso relatório solicitado por Emmanuel Macron, em 2018, e que trouxe ao debate público a repatriação de património cultural africano presente nos museus franceses.

Concentremo-nos então no caso europeu. Uma vez mais, tal como aconteceu no passado (relativamente à abolição da escravatura, no século XIX, ou à independência das colónias, no século XX), não se trata de um tema circunscrito a um determinado país, mas sim de um debate abrangente que deve ser considerado nas suas vertentes políticas e sociais, não podendo ser dissociado das necessidades de integração das comunidades migrantes no contexto europeu. Aqui, parece ser importante considerar que existem diferenças estruturais na sociedade comparativamente com os casos americanos e da Oceânia, acabando as mesmas por implicar diferentes âmbitos de ação na sociedade.

Existe uma consciência generalizada de que os museus e as escolas podem ser espaços importantes de diálogo e integração cultural. Veja-se a importância política que foi dada, em França, ao Musée National de l’Histoire de l’Immigration. Constata-se que este assunto tem vindo a ser tratado na generalidade dos países europeus, alguns dos quais, como a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a França e os Países Baixos, num processo já bastante avançado, apresentando um programa extenso que inclui sobretudo três itens: a mudança de linguagem e do discurso expográfico em programas escolares e museus; as experiências partilhadas entre países (Europa e África, Europa e América, Europa e Ásia); a restituição de património. Não me parece que os governos destes países se inscrevam dentro da mesma família política do partido que apresenta estas propostas no seu programa eleitoral; não creio que os governos de Angela Merkel ou Mark Rutte, que iniciaram este processo nos seus países, possam ser acusados de seguirem agendas próximas de ideologias que se inscrevam num quadro de “marxismo cultural”. Que dizer então de Ronald Reagan ou George Bush pai que, nos seus governos, deram abertura a medidas de restituição e cedências territoriais às comunidades nativas americanas?

A meu ver, este já não é um assunto circunscrito a reivindicações de partidos minoritários mas sim transversal à sociedade contemporânea. Compete assim debater, como foi referido inicialmente, o modo e os critérios sobre como este processo deve ser conduzido. No século XXI, é unânime o reconhecimento de que a escravatura foi um dos atos mais abjetos da humanidade, muitos portugueses têm também noção de que o colonialismo luso não foi propriamente mais benévolo que o de outros países europeus; não obstante, na cultura, sobretudo no património e nos museus, persiste ainda uma narrativa acrítica em relação a estes temas, que pode ter efeitos negativos na formação das mentalidades e no modo como entendemos as culturas não europeias. Ainda assim, seria injusto não reconhecer alguns avanços já realizados no nosso país: veja-se o interessante trabalho que tem sido desenvolvido no Padrão dos Descobrimentos (um dos principais símbolos do imperialismo português) através de uma programação estruturada de exposições reflexivas e analíticas do colonialismo português.

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Objectos africanos em exposição no Museu Nacional de Etnologia em 2002 PEDRO CUNHA/ARQUIVO

Existirá provavelmente alguma confusão de conceitos, pensando-se que ao mencionar nos museus a escravatura e outros aspetos negativos do colonialismo se está a apagar a História, quando, na realidade, esses acontecimentos sempre estiveram presentes, conhecemo-los através da História. Sabemos hoje que não foram mencionados nas escolas, durante o Estado Novo, por uma opção política: mas faz sentido essa omissão no século XXI e em democracia, por temor a deixar Portugal “mal visto” na História? Creio, sinceramente, que estes assuntos devem estar presentes e que os mesmos não representam um apagamento em relação a um determinado período histórico, mas sim a introdução de novos enfoques. A reescrita da História implicaria outro processo, aquilo a que muitas vezes se denomina de ucronia, isto é, a reconstrução da História tal como poderia ter acontecido e não como aconteceu realmente. Temos muitos exemplos de ucronias, a grande maioria romanceadas, desde O Homem do Castelo Alto (1962) de Philip Dick, que tenta imaginar como seria o mundo se os nazis tivessem ganho a Segunda Guerra Mundial, ou Civilizações (2021) de Laurent Binet, que supõe que se os incas tivessem imunidade às doenças levadas pelos europeus e o conhecimento do aço, talvez fossem estes a conquistar a Europa e não o contrário, assistindo-se assim à chegada de Atahulpa a Lisboa, no ano de 1531. A escravatura e o colonialismo europeu aconteceram mesmo, existe documentação, existem provas materiais e relatos orais, portanto, não se trata de um apagamento, mas sim de um maior reconhecimento e debate em torno desses acontecimentos.

A maturidade de um país também se mede pela forma como este é capaz de dialogar com o seu passado. Falar sobre o seu papel no comércio negreiro, ou sobre os abusos perpetrados pelos bandeirantes no Brasil, não vai apagar outros acontecimentos históricos como, por exemplo, o seu pioneirismo naval e o seu papel no desenvolvimento da ciência no período moderno. Uns elementos não “apagam” os outros, simplesmente porque ambos são acontecimentos históricos, evidências. Essa maturidade também permite perceber que o colonialismo apresenta matizes, não tem apenas duas cores, varia com os períodos, com as áreas geográficas e com certas condicionantes culturais e de poder. Produz processos de hibridização, mestiçagens e sincretismos, menos frequentes em África, mas de certa importância para a compreensão de certas sociedades no continente americano e asiático.

Creio que deveríamos ser todos um pouco mais sérios, e deixarmos de falar de cor, perguntarmo-nos porque é que os outros países europeus estão a apresentar políticas de descolonização cultural, interrogarmo-nos com o que estão a fazer, em que moldes, com que critérios e, sobretudo, se podem estas propostas ser aplicadas em Portugal. É importante que se aprenda com alguns erros dos outros e que este debate não se torne exclusivamente num debate entre as elites culturais sem ter um impacto, no continente europeu, na melhoria social das condições de vida e de equidade social das comunidades racializadas.

Recentemente, o ICOM Portugal (sigla em inglês de Internacional Council of Museums/Conselho Internacional de Museus) realizou um inquérito aos museus portugueses com coleções não europeias, dados que serão publicados brevemente no Boletim do ICOM, sendo que alguns dados preliminares já foram difundidos pela imprensa, em dezembro. Os resultados deste inquérito indicaram que existia um défice muito significativo no estudo deste tipo de coleções, sendo que, entre os museus que responderam, a maioria tinha percentagens muito reduzidas de peças estudadas.

Sem um conhecimento das coleções torna-se difícil criar narrativas com rigor histórico sobre as mesmas, torna-se também impossível a conceção de uma lista de bens passíveis de repatriação, como foi feito pelos cinco países europeus referidos anteriormente. Mas é a repatriação em si uma solução, “a solução final” para a descolonização da cultura? Guido Gryssels, diretor do Africa Museum, em Tervuren, na Bélgica, transmitiu, nos últimos Encontros de Outono do ICOM Portugal, alguns exemplos interessantes fruto também de alguma experiência que vem tendo com esta temática. Refere, inclusivamente, que a repatriação per se não é uma solução, dando como exemplo o que aconteceu no tempo de Mobuto Sese Seko, quando várias peças foram devolvidas pela Bélgica ao Congo, passando mais tarde as mesmas a integrar o mercado da arte em vez dos museus desse país. É fundamental que se crie uma base de diálogo sólida e responsável, que se defina um critério: que peças são passíveis de ser repatriadas? Qual é o contexto em que foram adquiridas? Em que condições vão estar exibidas nos seus países de origem (este último aspeto é, por exemplo condição essencial para a Alemanha)? Acima de tudo, é necessário que exista um diálogo transnacional, um investimento na formação museológica nos países de origem (o projeto The Museums Lab, iniciado pelo governo Alemão, é um excelente exemplo), colaboração e acesso aos inventários, realização de exposições itinerantes intercontinentais, repatriação através de arquivos digitais, fotografias ou cópias 3D, caso não existam, nos países de origem, condições para a preservação e acondicionamento das peças (dando aqui o exemplo do projeto piloto realizado entre a Bélgica e o Ruanda).

A experiência belga tem-nos indicado que muitos dos países africanos não querem uma restituição massiva, estando conscientes de algumas das suas limitações de preservação, mas sim, como no caso do Congo, de poder contar com objetos que são fundamentais simbolicamente para a sua história e património, sobretudo, poder ter uma representatividade material de todas as suas culturas. É apenas um exemplo, existem outros, mas é demostrativo de uma necessidade de diálogo transnacional, critérios metodológicos e sensatez de ações.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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