Poderão os robôs substituir os advogados?

O Direito é um campo ideal para a inteligência artificial. Para que isso aconteça, é preciso “codificar o pensamento jurídico”. O que pode acontecer num futuro não muito distante.

A ideia de que robôs e máquinas poderão um dia substituir os seres humanos fascina e assusta muitas pessoas. A literatura, o cinema e os desenhos animados dão-nos imagens de robôs que assumem o controlo da humanidade num futuro não muito distante. Até ao início do século XXI, o tema da inteligência artificial estava confinado ao mundo académico, à ficção científica e a algumas indústrias. No final do século passado, a Google trouxe a inteligência artificial para vida de todos nós de uma forma palpável.

A inteligência artificial está em todo o lado, nas redes sociais, na publicidade, na investigação científica, no desenvolvimento industrial, entre tantas outras coisas. Muitos programas informáticos são alimentados por motores de inteligência artificial. Os telemóveis, computadores e outros aparelhos eletrónicos incorporam sistemas de inteligência artificial.

Mas a revolução da inteligência artificial parece não ter chegado ao mundo do Direito. Obviamente, muitos advogados e escritórios de advogados usam sistemas de inteligência artificial, alguns deles concebidos especificamente para advogados. Mas a inteligência artificial não transformou a advocacia da mesma forma que transformou outras atividades.

As mudanças provocadas pelas tecnologias de inteligência artificial, tornam necessário discutir o papel da inteligência artificial no futuro da advocacia e do Direito.

Comecemos por definir “inteligência artificial”. Segundo a Enciclopédia Britânica “a inteligência artificial (IA) é a capacidade de um computador digital ou robô controlado por computador para executar tarefas normalmente associadas a seres inteligentes”. “Inteligência artificial” designa a capacidade de uma máquina simular a lógica de um algoritmo. Um algoritmo é uma sequência finita de instruções determinadas que são utilizadas para executar uma operação. Os algoritmos são utilizados como especificações para efetuar cálculos, processar dados, elaborar raciocínios ou tomar decisões de forma automatizada e outras tarefas. A inteligência artificial dá às máquinas a capacidade de perceber um determinado ambiente e de tomar medidas para alcançar os objetivos estabelecidos por um programa informático.

Para alguns advogados, é impossível que a inteligência artificial seja aplicável ao mundo do Direito, pelo menos no que respeita aos assuntos jurídicos mais complexos, porque a atividade jurídica, independentemente da sua forma, trabalha com “palavras”. A retórica e a gramática sempre estiveram no cerne de todas as profissões jurídicas. As palavras podem ser ambíguas, ter múltiplos significados dependendo do contexto e da sua ordem na frase. A interpretação das palavras parece ser uma atividade puramente humana.

Prescrição e dedução

Contudo, devido à sua natureza “prescritiva”, o Direito e a lei dependem de simples processos de raciocínio dedutivo, o que torna o Direito numa atividade apta para “codificação” através de inteligência artificial. Em termos mais simples, o Direito não é imune à inteligência artificial; pelo contrário, o Direito é um campo ideal para a inteligência artificial. Para que isso aconteça, é preciso “codificar o pensamento jurídico”.

Para “codificar o pensamento jurídico” é necessário criar os processos que permitirão às máquinas interpretar leis, contratos e decisões judiciais, o que parece estar ainda longe porque as “palavras”, as “decisões judiciais”, as questões jurídicas, em - 2 - geral, assumem diversos significados, muitas vezes ambíguos e abertos à manipulação. A diferença entre o “certo” e o “errado” pode não ser clara, nem sempre se reduz a “sim” ou “não”, branco e preto, não é uma série de 0s e 1s.

No entanto, o pensamento jurídico pode e será “codificado” num futuro não muito distante.

Os sistemas de revisão de documentos utilizam já tecnologias de aprendizagem automática e tecnologia de reconhecimento de padrões para identificar conceitos chave de contratos, classificar cláusulas, padrões nas decisões judiciais, assinalar discrepâncias e similitudes na aplicação e interpretação de leis e contratos, etc.

No futuro, a inteligência artificial permitirá aos juízes identificar os elementos-chave das suas decisões e oferecer-lhes um roteiro para o processo de tomada de decisão. Tomemos o exemplo de uma simples decisão judicial sobre a competência do tribunal sobre determinada matéria que lhe é apresentada. Todos os países do mundo têm regras claramente definidas para determinar a jurisdição dos seus tribunais, regras essas que podem ser codificadas em linguagem informática, ou seja, num algoritmo.

Os futuros algoritmos jurídicos ajudarão juízes e advogados a determinar se um assunto se enquadra numa ou noutra categoria jurídica e como a lei será aplicada em casos específicos. Tal estará apenas a um passo do poder de determinar a aplicação de normas jurídicas. A integração de uma conduta na previsão de uma norma é uma tarefa que no futuro será realizada por sistemas informáticos, com um grau crescente de complexidade, eliminando falsos positivos, aplicando regras de conflitos de direitos, identificando a existência de causas de justificação ou de exculpação, etc.

Muitos argumentarão que o Direito tem características específicas, nomeadamente a interferência de sentimentos e convicções, o que torna impossível a sua redução a algoritmos.

É errado analisar a inteligência artificial através desse prisma. Há duas áreas em que a inteligência artificial terá dificuldades em dominar: primeiro, na camada exterior das leis atuais, onde prevalecem elementos culturais, sentimentais e políticos que encobrem o núcleo das leis. Com o tempo, estes elementos serão depurados por algoritmos mais poderosos. A força da racionalidade desses algoritmos levará à descoberta de regras mais simples e, portanto, mais justas, livres de muitas das incoerências e conflitos que hoje se verificam.

A inteligência artificial criará formas mais rápidas e eficientes de desempenhar todas as tarefas jurídicas, como é o caso da gestão de conhecimento, análise de documentos, redação de contratos, análise de contenciosos, preparação de peças processuais.

Todas as profissões jurídicas beneficiarão com a inteligência artificial. Os legisladores farão melhores leis; os juízes darão sentenças mais justas; os advogados poderão aperfeiçoar as suas peças processuais com maior eficiência e qualidade. Muitos conflitos serão resolvidos antes de chegarem aos tribunais porque se a probabilidade de sucesso for baixa, essa parte procurará chegar a acordo ou desistirá de ir a tribunal.

A inteligência artificial não substituirá os advogados, mas mudará radicalmente a forma como os advogados prestam serviços.

No fim de contas, o pensamento jurídico deverá permanecer na esfera das atividades humanas porque dentro do núcleo de todas as normas jurídicas vivem valores e os valores não são “computáveis”. Os valores não podem ser reduzidos às - 3 - formulações matemáticas de algoritmos. A criação e a aplicação da lei devem, no final, ser feitas por seres humanos e para os seres humanos.

O Direito é uma ciência e uma técnica, mas é também uma arte e, portanto, não pode ser reduzido a algoritmos. Este é o limite da aplicação da inteligência artificial ao Direito e o limite para qualquer tecnologia alimentada por inteligência artificial.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 4 comentários