29 de janeiro: o dia da suspensão da liberdade de expressão, vulgo, dia de reflexão
Sempre que há eleições, durante 24 horas, em Portugal, ainda se vive em censura. Em regra tem sido ao sábado.
A cada eleição marcada, seja ela de que natureza for, impera durante longas horas e por força de lei a obrigatoriedade do silêncio, em matéria de política nacional.
De forma simples: isto significa que em Portugal há sempre um dia em que a liberdade de expressão fica em suspenso sob a égide da necessidade de refletir em quem queremos votar.
O dia da reflexão, instituído em 1975, teve à época um propósito. À altura, tendo em conta o período de grande agitação política que o país atravessaria, entendeu-se que a existência de uma pausa nas campanhas eleitorais seria “útil” para o amadurecimento dos cidadãos que não estavam habituados a estas andanças. A sociedade portuguesa, sedenta de participação política e cívica, era bastante activa e vivia-se um tempo de grande agitação política e social considerado normal para um país que saíra muito recentemente de um longo regime político castrador da liberdade de expressão.
Se faria sentido a existência do dia de reflexão pela altura de 75/76, sabemos que as regras legais deste dia, instituídas nas primeiras eleições livres nacionais, não sofreram até hoje qualquer alteração de fundo no seu ADN.
Por força de lei, qualquer actividade política que possa de alguma forma influenciar o cidadão, quer directa quer indirectamente, está proibida no dia anterior às eleições. Não são igualmente permitidas a publicação pela comunicação social de quaisquer notícias ou opiniões e o país mergulha no vazio político nacional até às 20h de domingo.
Até lá, toda a comunicação social e não só, deve estar remetida ao silêncio onde nada se pode escrever e noticiar sobre as eleições sob pena de um qualquer “lápis azul” aplicar uma pesada coima. Os partidos políticos terminam as suas campanhas às 23h59 de uma sexta-feira, não podendo de forma pública acrescentar uma palavra que seja no minuto seguinte.
Entendo e aceito a proibição de sondagens, porque no fundo elas podem interferir no acto de votar.
No entanto, a persistência em manter esta “estupidez jurídica” quer demonstrar de forma clara e inconcebível que os eleitores portugueses ainda não são informados e ainda não têm experiência eleitoral suficiente, precisando de um dia sem intervenção exterior para pensar em quem votar. Tudo igual com em 75/76.
Ora, encontramos nisto uma enorme contradição que, por mera e incompreensível incompetência legislativa, ainda não foi alterada.
A nossa sociedade, que se vai transformando por força da sua própria evolução e pelo comportamento individual dos cidadãos, vai introduzindo novas regras para facilitar a participação cívica individual. É disso exemplo o voto antecipado e em mobilidade, com o uso desta possibilidade em tempos de pandemia a ter o seu expoente máximo, e o seu uso cada vez mais frequente pelos eleitores obrigaria a um novo pensamento legislativo sobre a matéria em causa.
Quem opta por exercer este importante direito cívico antes do dia “D”, fá-lo em plena campanha eleitoral, significando então que se vota então em condições que a própria lei eleitoral não admite. Se a ideia é o eleitor não ser influenciado, precisando de um dia para “pensar”, algo está errado em persistir-se no uso do dia de reflexão, de acordo com realidade existente.
Com a possibilidade do voto antecipado, conforme se prevê, a mesma lei que regula o sistema eleitoral proibindo manifestações públicas suscpetíveis de interferir na escolha dos cidadãos no dia anterior às eleições é a mesma que permite que qualquer cidadão vá votar uma semana antes, ao som dos carros de campanha a fazer um barulho infernal com os seus mais histéricos hinos, e que possa receber pelas mãos dos meninos das “jotas” a sua “propaganda”.
Questionado: mas só quem vota ao domingo é que não pode ser influenciado pela proibição da campanha eleitoral ou por outros meios? Aqueles que votam antecipadamente já podem ser? Bastaria esta simples reflexão para por fim a isto.
No entanto, esta norma é de tal maneira extemporânea que, tendo em conta que cada vez mais vivemos num mundo digital, podemos a qualquer momento assistir a tudo o que foi dito em campanhas eleitorais no próprio dia em que se vota, e esta realidade é mais uma a juntar a tantas outras para se poder dizer que esta lei está totalmente desajustada da nossa realidade social. É o próprio dia de reflexão que cria hoje uma enorme desigualdade, sem qualquer nexo, entre os cidadãos.
Não podemos, e sobre esta matéria em concreto, imputar directamente qualquer responsabilidade à Comissão Nacional de Eleições (CNE), mas deveria esta entidade, que se limita a fazer cumprir o que está preceituado na lei eleitoral, ter um papel mais activo, devendo chamar a atenção do legislador para algumas incongruências existentes na lei até ao dia de hoje.
Tudo isto pode simplesmente acabar e, sendo certo que muitos concordam que o dia de reflexão não serve para nada, como corrigir esta já tão antiga norma?
Como tudo o que rege a nossa sociedade, cabe este assunto na esfera de competência da Assembleia da República e, cada vez mais, é premente que o legislador esteja atento à aplicabilidade das normas, para que estas estejam de acordo com a realidade em que se vive.
Para tal, e para pôr o fim definitivo ao dia de reflexão, bastará um qualquer partido político, à semelhança do que aconteceu no passado por iniciativa da Iniciativa Liberal, levar de novo à consideração na casa da democracia na próxima legislatura o que hoje se proíbe não se podendo escrever ou publicar qualquer assunto sobre política nacional.
Isto é o mesmo que dizer que a liberdade de expressão e a democracia terão de ficar suspensas pelo menos 24 horas e aceitar isto é não só não entender a evolução social e natural das coisas mais simples da vida dos cidadãos, como também pactuar com princípios que não são dignos de um Estado de Direito Democrático. Concluindo: durante algumas horas, em Portugal, ainda se vive em censura. Em regra tem sido ao sábado.