Há sempre alguém que resiste, alguém que diz não

A recém-criada iniciativa Acordo Zero é um bom exemplo de resistência. Neste caso, no domínio da língua e da ortografia.

Janeiro, no que toca à nossa História, é mês de revoltas célebres. Há o 31 de Janeiro de 1891, revolta sob a forma de levantamento militar, no Porto, que, nascida de uma reacção indignada ao Ultimatum britânico de 1890, ficou para a história como a primeira tentativa de derrubar a monarquia para instaurar um regime republicano em Portugal; e temos o 18 de Janeiro de 1934, cada vez menos lembrado, que neste 2022 celebra um aniversário capicua: 88 anos.

Do primeiro se diz que inspirou o célebre Fado do 31, transformando o que antes era o simples título de um jogo de cartas (o 31) em sinónimo de zaragatas, revoltas e sarilhos (“arranjaste-nos um 31…”). Por curiosa coincidência, o próximo 31 calha no dia seguinte às legislativas. Já o 18 de Janeiro de 1934, com revoltas operárias na Marinha Grande (mas também em Almada, Sines ou Silves), parte de uma gorada greve geral contra a ditadura do dito Estado Novo, inspirou nas últimas décadas muitos artigos, entrevistas (a sobreviventes e historiadores), estudos e livros, dos quais é de destacar o de Fátima Patriarca, Sindicatos contra Salazar. A Revolta do 18 de Janeiro de 1934 (ICS, 2000). O historiador António Araújo citou-o, justamente, ao falar ao PÚBLICO, em 2018, do atentado à bomba contra Salazar e da Lisboa revoltosa dos anos 1930. E Manuel Alegre (autor do poema de onde saiu o título desta crónica), ao escrever, também no PÚBLICO, sobre o primeiro dos três volumes de Memórias de Edmundo Pedro, à data com 88 anos, tantos quantos cumpre o 18 de Janeiro agora, fez questão de referir a presença do autor e do seu pai, Gabriel Pedro, nos “combates que tiveram a mais alta expressão na greve geral de 18 de Janeiro de 1934 e na fracassada tentativa insurreccional da Marinha Grande.”

Quando Manuel Alegre fechou com a frase “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não” o poema Trova do vento que passa no IV Capítulo do livro Praça da Canção, estávamos em 1965 e as revoltas já tinham passado a actos de resistência. Nesse mesmo ano, outro poeta escrevia: “Não há barragem que estanque/ o nosso caudal de medo/ não há sonho que levante/ o sonho que é hoje infante/ na ponta dum pesadelo” (Os Sapatos). Chamava-se José Carlos Ary dos Santos e morreu num 18 de Janeiro, quando o de 1934 fazia 50 anos.

A frase de Alegre, difundida na canção homónima de Adriano Correia de Oliveira, Trova do vento que passa (há também uma versão de Amália, mas fecha com outros versos), é daquelas que, podendo adaptar-se a muitos outros cenários ou ocasiões, não deixa dúvidas quanto ao que transmite. Basta ler a estrofe completa: “Mesmo na noite mais triste/ em tempo de servidão/ há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz não.” Naquele tempo o alvo era a ditadura. Mas a resistência, como acto de cidadania, pode ter muitos outros motivos.

Um exemplo, recente, é o da iniciativa Acordo Zero. Lembram-se dos dísticos “nuclear não, obrigado”, como se anunciassem zonas livres do fantasma da energia nuclear? Pois esta refere-se à língua portuguesa e à ortografia. Foi anunciada oficialmente este mês e tem por objectivo, segundo o comunicado que a anuncia, criar uma “distinção de mérito independente atribuída a entidades e/ou pessoas que, em defesa da Língua Portuguesa, rejeitem incondicionalmente a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 a ela tão prejudicial.” Depois de muitos manifestos e algumas iniciativas legislativas, de deputados e até de cidadãos (como a ILCAO, sujeita a um lote de peripécias que a colocaram num inexplicável limbo) e sem que nada se tenha alterado no péssimo rumo que o dito (des)acordo vem imprimindo à escrita, a ideia de publicamente distinguir quem não o segue é bem-vinda. Uma forma de resistência, de dizer não.

Lançada pelo Portugal em Movimento Contra o AO90, e defendendo (e bem) “a preservação da diversidade da Língua Portuguesa em cada um dos países que a fala e escreve”, a iniciativa Acordo Zero (“0% emissões AO90, 100% oxigénio ortográfico”) abriu uma página no Facebook e tem vindo a angariar subscritores (declaração de interesses: também assinei, por motivos que quem me lê julgará mais do que óbvios). É uma forma de distinguir quem ainda organiza espectáculos com espectadores em lugar de “espetadores”, quem acusa recepção sem entrar em “receção”, quem não confunde óptica com “ótica”, quem não se rende ao “para” em lugar de pára, quem resiste a ir na conversa de uma unificação ortográfica que é pura falácia. Sendo uma “solução” para um problema que não existia, o AO90 é agora um problema com uma solução que existe: corroê-lo, até que dele só reste uma funesta e sombria memória.

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