Internato em tempos de covid-19 — reflexão de uma interna no fim do seu percurso

Compreendo que este tempo não foi perdido, mas sim ganho, na medida em que cumpri o meu papel cívico e ético enquanto profissional de saúde, ajustando-me e ajudando os outros em benefício do bem comum, afinal a essência do nosso juramento profissional.

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EPA/ETIENNE LAURENT

Em Março de 2020, os primeiros casos de covid-19 foram registados em Portugal e, com eles, a declaração de pandemia por parte da Organização Mundial da Saúde. Este contexto sem precedentes alterou de forma dramática as rotinas estabelecidas e os planos realizados e fez surgir desafios em todos os Internatos de Formação Específica, incluindo no meu.

Assim, para satisfazer a necessidade de uma crescente quantidade de doentes covid-19, desde Março de 2020 e durante dois meses contínuos, tive o meu estágio de Reumatologia suspenso a fim de realizar funções exclusivas em equipas de enfermaria e serviço de urgência covid-19 no Hospital dos Covões, totalizando cerca de 60 horas semanais. Para além da sobrecarga de trabalho, por esta altura vivia-se um clima de medo, mudança e de impotência perante o grande volume de doentes, muitos em estado crítico, que procuravam atendimento no nosso hospital e aos quais tentávamos prestar apoio, sem qualquer preparação ou capacidade de resposta para o que nos era exigido.

Apesar destes constrangimentos, dois meses depois foi possível manter o plano de formação definido, exceptuando a oportunidade de realização de estágio opcional no estrangeiro. Contudo, no tão aguardado regresso ao serviço de Reumatologia, o ambiente de aprendizagem clínica foi inevitavelmente alterado devido às regras de distanciamento social, que forçaram as instituições a modificar os turnos de trabalho e as calendarizações de estágios.

Por um lado, a imposição de realização de consultas em regime de teleconsulta e a diminuição do número de consultas presenciais diminuiu a exposição a doentes reumáticos e à prática hands-on de procedimentos da especialidade. Mesmo após a indicação de retoma gradual de consultas presenciais, muitos doentes optaram por manter o regime de teleconsulta por receio, sendo por vezes perceptível que subestimavam o estado da sua doença para evitar a vinda ao hospital. E até durante as consultas presenciais foi notória uma mudança na interacção médico-doente devido, principalmente, à barreira criada pelo uso da máscara, que tornava mais difícil a comunicação com o doente, fundamental na decisão partilhada, voltando-se, assim, ao paradigma mais paternalista da medicina.

Também a aprendizagem supervisionada ficou comprometida com a redistribuição dos médicos do meu serviço de modo a permitir o desfasamento de horários e o teletrabalho, incluindo a assistência a consultas de especialistas e a aprendizagem de ecografia musculoesquelética, técnica que só retomou a sua actividade em Junho de 2020 e com periodicidade inferior à praticada em temos pré-pandemia.

Por outro lado, a suspensão de outras actividades inerentes ao serviço e à especialidade, incluindo reuniões de serviço e projectos de investigação, diminuiu a exposição a sessões importantes para a minha formação, tendo ainda limitado o número de trabalhos e apresentações para os quais contribui e a frequência em cursos com valor científico e curricular reconhecidos, muitos dos quais foram cancelados e ainda não foram retomados até à actualidade.

O condicionamento nas actividades dos restantes serviços levou, ainda, a uma readaptação dos estágios clínicos, com a menor possibilidade de realização de estágios fora e no hospital, e com prejuízo formativo nos estágios realizados nos quais os procedimentos ou consultas estavam limitados pelas restrições impostas pela pandemia.

Apesar de todas as alterações acima referidas, a pandemia de covid-19 forneceu uma experiência única de aprendizagem. Como não é possível retornar ao “normal” quando tudo mudou, é preciso capacidade de adaptação ao “próximo normal”, materializada nas alterações dos padrões de trabalho, horários, calendários, rotinas, modo de assistência aos doentes e de colaboração com os colegas.

De facto, a pandemia ofereceu-nos uma oportunidade única para reforçar capacidades não técnicas, incluindo de trabalho em equipa, liderança, priorização e multitasking, ao mesmo tempo que nos tornou mais resilientes e melhorou a nossa capacidade de adaptação a novos ambientes e novos papéis. E se por exemplo o novo paradigma de cuidados de saúde foi um obstáculo à comunicação médico-doente a que estávamos habituados, por outro lado abriu novas oportunidades para o futuro, com a possibilidade de utilização de teleconsulta, por exemplo, desde que usada com prudência. Não tenho dúvidas de que o futuro na Reumatologia e na Medicina vai ser influenciado por este evento e todos nós tivemos e temos, actualmente e no futuro próximo, um papel activo na sua construção.

Simultaneamente, a pandemia covid-19 fez-me perceber o que é realmente importante, enquanto médica e enquanto pessoa. Numa profissão exigente como é o exercício da Medicina, por vezes o foco excessivo no nosso trabalho acaba por nos privar de outras componentes importantes da vida, e este período foi para mim um espaço de reflexão e introspecção pessoal.

Por fim, se excluir o cansaço no cumprimento da assistência a doentes covid-19 e a exigência que me foi imposta na tentativa de recuperar o tempo formativo em Reumatologia, compreendo que este tempo não foi perdido, mas sim ganho, na medida em que cumpri o meu papel cívico e ético enquanto profissional de saúde, ajustando-me e ajudando os outros em benefício do bem comum, afinal a essência do nosso juramento profissional.

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