Carta ao Vitão

Eu precisei de escrever para dizer que sinto saudade. E o que é a saudade, se não estar triste a pensar no quanto se foi feliz?

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"Eu chegava da praia e tirava os sapatos na entrada da sua casa" EPA/Antonio Lacerda

“Rua Nascimento Silva 107, você ensinando pra Elizete as canções de canção do amor demais.” Assim começa a Carta ao Tom 74, canção escrita por Vinicius de Moraes e Toquinho para Tom Jobim. Mas quase que podia ser escrita por mim para você. Porque, por essas coisas esquisitas e proféticas da vida, também era na Rua Nascimento Silva que estávamos, uns números de porta e uns anos mais adiante, é certo, mas era nesse endereço que eu escutava você tocar. Não para Elizete, mas para mim.

No outro dia, recebi na caixa de mensagens três ficheiros pequeninos com o símbolo de descarregar, como se fossem uns desses áudios irrelevantes, como se não fosse nada. Mas era. Era música. A música, sabia-o Vinicius, sabia-o Tom, e sabe-o tão bem você, é carta que atalha ao coração. As três músicas que você gravou e me enviou pertencem ao livro de partituras que Hermeto Pascoal compôs para cada um dos dias do ano. E eram as do dia do meu aniversário e dos aniversários das minhas filhas. Quando, dos ficheiros inofensivos, brotou aquela música linda, tão maravilhosamente tocada por você, comecei, é claro, a chorar. Nada como a música para aquecer ou, a bem dizer, para esquentar a alma. Neste caso os dois, sabe. Aquece e esquenta em simultâneo. E lá estava eu, de repente, na sua sala, escutando você tocar. Sempre foi tão bom ouvir você tocar. Não é à toa que você é da banda do Zeca Pagodinho, o cara mais legal do mundo, talvez para quem não tenha conhecido você. Você, que tinha tocado com a Elza Soares e aprendido com o próprio Hermeto Pascoal, era para mim o músico mais prodigioso naquelas tardes em Ipanema, repetindo e repetindo notas de encontro ao tempo. “Está tudo no ar, está tudo em vibração” você me disse um dia. Assim é com a música, assim também com a saudade.

“Lembra que tempo feliz, ai que saudade, Ipanema era só felicidade.” Lembro, e um calor me invade, esse calor de poder voltar a expressar-me no português do Brasil, cujo sotaque nunca incorporei, mas que domina minha escrita, quando é direccionada a você. Porque me devolve a esses anos em que eu era mais jovem, mais leve e descomprometida. Meus dias eram feitos de matéria fluida e simples. Eu chegava da praia e tirava os sapatos na entrada da sua casa. Sempre se tiravam os sapatos na entrada da sua casa. E a porta estava sempre aberta. E às vezes você não estava. Então, eu entrava e esperava na sala. Falava com Lui, seu filho, que sorria. Me recebiam como se fosse suposto eu estar ali. E toda aquela leveza e normalidade me encantavam. E depois você chegava com a prancha de surf, afinal no Rio se surfa. E era bonito ver o quanto você surfava feliz demais aquelas ondas do Rio, apesar de se queixar. Você e seus amigos surfistas (que entravam de tronco nu pela sua casa adentro com tanta espontaneidade quanto eu) sempre reclamavam que não havia ondas no Rio. E sonhavam alto com a Indonésia ou Portugal. Eu dizia que sim, que em Portugal as ondas eram melhores. E são, mas o sonho era fingido de parte a parte, porque estávamos todos bem ali e não trocaríamos por nada aqueles instantes. E depois, às vezes, você acendia um baseado. Outras sentava e tocava. Talvez eu achasse tudo mais belo por saber que era efémero, que iria embora um dia, assim é com a vida também. Ou talvez tivesse de acabar só para mim. Pois imagino você igualzinho, pegando o skate para ir no mercado, fazendo um açaí delicioso, tentando convencer todos a subir a Pedra da Gávea de madrugada, olhando derretido para o seu filho: “Cada dia mais lindo, não está?”

Passávamos tanto tempo desabafando sobre nossos errantes amores. Chorávamos pela pouca sorte que tínhamos, sabendo, no fundo, que estávamos perante uma imensa sorte. Essa sorte de um amor que é feito de amizade. Era mesmo “como se o amor doesse em paz”.

Você me contou que, gravando as 365 músicas do livro, a cada dia pensava: “Nossa, essa é a música mais bonita que eu já ouvi.” E que no dia seguinte, quando gravava uma nova música, acontecia a mesma coisa. E daqui extraiu um significado, o de cada dia poder ser melhor que o outro, mesmo que não seja. Foi qualquer coisa assim. A música é a sua espiritualidade.

Já não se escrevem cartas, e assim são as cartas que se reclama que já não se escrevem, porque na verdade ainda se escrevem cartas, mas só quando se quer ser Vintage. É como Vinil, álbum de fotografias ou carrinha pão de forma. Isto porque na palma da mão podemos agora conversar. E nós fazemo-lo, de tempos a tempos. Não tanto quanto antes, claro. Temos nossas vidas, cada um seu hemisfério, sotaque e família. Sei que carta está longe do abraço, mas, ainda assim, mais perto do que o emoji. Mesmo não sendo do tempo das cartas, a extensão que proporcionam me acalenta e eu precisei de escrever para dizer que sinto saudade. E o que é a saudade, se não estar triste a pensar no quanto se foi feliz?

Recordo você, fazendo de cada dia uma invenção melhor e de cada música tocada a mais bonita de todas e penso que pode ser uma boa oração para levantar a cabeça, um bom remédio para a saudade. Ou, por outras palavras: “É meu amigo, só resta uma certeza. É preciso acabar com essa tristeza, é preciso inventar de novo o amor.”

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