Para o coração, a vida é simples

Se sempre tivemos receio de confrontar os corpos sem vida, tendo organizado a sociedade de forma a só sermos confrontados pelo período mais breve possível e apenas quando estritamente necessário, agora, nas circunstâncias da pandemia, a morte passou a ser uma abstracção por completo.

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Ed Robertson/Unsplash

Nas primeiras páginas do livro A Morte do Pai, de Karl Ove Knausgård (o primeiro livro de A Minha Luta, obra composta por seis volumes e editada em Portugal pela Relógio D’Água), pode ler-se: “Se o teu pai falecer no jardim num ventoso domingo de Outono, vais carregá-lo para dentro de casa; se não for possível, pelo menos vais cobri-lo com uma manta. Mas este impulso não é o único que temos em relação aos mortos. Não menos evidente do que o impulso de ocultarmos os corpos é o facto de os colocarmos sempre ao nível do solo o mais rapidamente possível. É quase inconcebível um hospital que transporte os seus mortos para cima, que coloque as suas salas de autópsia e de cadáveres nos andares mais altos. Os mortos são colocados o mais perto possível do solo. E aplica-se o mesmo princípio a quem cuida deles; uma companhia de seguros pode muito bem ter as suas instalações no oitavo andar, mas não uma funerária.”

Nas últimas semanas, tenho recordado o início desta obra do escritor norueguês por se tratar de uma reflexão lúcida sobre a forma como lidamos com a morte e sobre a dificuldade que temos em encarar cadáveres. Se sempre tivemos receio de confrontar os corpos sem vida, tendo organizado a sociedade de forma a só sermos confrontados pelo período mais breve possível e apenas quando estritamente necessário, agora, nas circunstâncias da pandemia, a morte passou a ser uma abstracção por completo.

Recebemos números compridos através das notícias, mas não sabemos quem morre nem vemos funerais nem as pessoas que sofreram as perdas. Tudo parece estar a ser tratado de forma objectiva, racional, longe da vista e longe do coração; como se houvesse um modo higiénico de lidar com o assunto. Nunca compreenderemos a morte, é certo. O ser humano nunca estará preparado.

Para Schopenhauer, por exemplo, o medo da morte não é causado pelo fim da vida, mas sim pela destruição do nosso organismo. Segundo o filósofo alemão do século XIX, os seres dão mais atenção ao corpo do que à essência e, por isso, vivem angustiados perante a morte. Há muito que, a Ocidente, vivemos estritamente focados na existência dos corpos; a essência, ou como os antigos lhe chamam, a alma, é algo desconsiderado pela maioria. Perder alguém, ou falar em números de mortos sem termos a noção dos corpos, é para nós algo absolutamente abstracto e asséptico, uma vez que o corpo é tudo o que temos como certo. Para quem fica, cabe permanecer rente ao chão, com o luto por fazer e a dor distendida para a vida inteira; para quem parte, relembro novamente as palavras de Karl Ove Knausgård: “Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois pára.”

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