A proibição do consumo tabágico: a sensatez e a vertigem

Uma atitude proibicionista como a decretada pela Nova Zelândia, parecendo ir no caminho certo, poderia antes ser uma vertigem com consequências contrárias ao que todos desejamos.

A Nova Zelândia anunciou um plano para aumentar gradualmente a idade permitida para a venda de tabaco, com a proibição da mesma a pessoas nascidas depois de 2008. A partir de 2027, a idade legal para fumar - que é atualmente de 18 anos - sofrerá um aumento de um ano a cada ano, o que significa que quem nasceu depois de 2008 nunca poderá comprar tabaco, dado que será sempre um ano mais novo do que o limite legal.

Esta notícia gerou uma série de comentários habitualmente esgrimidos neste contexto que foram de um apelo a medidas de caráter proibitivo a bem da saúde pública a protestos sobre a invasão na esfera da liberdade individual.

A primeira reflexão prende-se necessariamente sobre se as consequências na saúde pública derivadas do consumo tabágico justificam medidas repressivas tão significativas. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) morrem por ano mais de 8 milhões de pessoas por doenças associadas ao tabaco. Na União Europeia, estimam-se mais de 700 mil mortes anuais, e em Portugal cerca de 13.500 pessoas/ano de acordo com as últimas estimativas do Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME) correspondentes ao ano de 2019. Esta situação dramática advém de o tabagismo ser o mais importante fator de risco isolado para cerca de 50 doenças, como vários tipos de cancro, doenças cardiovasculares e respiratórias, sendo que algumas destas como o cancro do pulmão ou a doença pulmonar obstrutiva crónica teriam uma ocorrência residual na ausência do tabagismo.

Adicionalmente, cerca de metade dos fumadores morre precocemente, perdendo em média cerca de 14 anos de expectativa de vida (European Commision, 2021), calculando-se que em Portugal o tabaco tenha sido responsável por 10,9% do total de perda de anos de vida saudável, expressa em DALY (IHME,2020). Comparativamente com outros fatores de risco, usando taxas padronizadas pela idade, estima-se que, no mesmo ano, o tabaco tenha sido a primeira causa de perda de anos de vida saudável em ambos os sexos, seguido da glicémia elevada, do índice de massa corporal elevado, do uso do álcool e da hipertensão arterial. Perante estes dados, a relevância dramática do tabagismo na saúde publica é por demais evidente, sendo no Ocidente a maior causa evitável de doença.

O segundo motivo de reflexão relaciona-se com a prevalência e a evolução do consumo tabágico no nosso país. As autoridades da Nova Zelândia tomaram esta medida numa altura em que 13% da sua população é fumadora. Em Portugal, segundo o recente relatório do Programa Nacional para a Prevenção e Controle do Tabagismo, 17% da população é fumadora regular, sendo que em 2019, de acordo com dados recolhidos no Dia da Defesa Nacional, 58,4% dos jovens com 18 anos já tinham experimentado o tabaco, sendo que 37,4% tinham consumido nos últimos 30 dias, o que sugere que o tabagismo se manterá um hábito regular num significativo número de portugueses.

O terceiro ponto de reflexão questiona se todas as medidas de informação, sensibilização e de luta contra o tabagismo se encontram plenamente realizadas no nosso país. A resposta é claramente negativa, dado que um número significativo de jovens continua a socializar-se em grupos em que o tabaco tem um retorno social e de afirmação positivos, mantém-se uma bonomia na aplicação das medidas de restrição em vários locais públicos, a legislação continua a permitir o consumo tabágico em locais onde os não fumadores podem ser afetados pela exposição passiva e a tabaqueira continua a ter liberdade para patrocinar vários eventos culturais e, pasme-se, até científicos, promovendo assim uma imagem favorável que acaba em última análise por promover, embora de forma indireta, o consumo tabágico. A promoção de novas formas de inalação de nicotina, como o cigarro eletrónico ou o tabaco aquecido é massiva, como pode ser comprovada em qualquer estação de serviço ou em eventos culturais ou de lazer. Para além do referido, a rede de consultas de cessação tabágica quer a nível dos centros de saúde, quer nos hospitais fica muito aquém das necessidades, não permitindo um acesso fácil a programas de cessação tabágica por parte dos fumadores sensibilizados para o mesmo.

Por último, uma legislação proibitiva deste género, no nosso contexto, em que se discute a legalização de outras adições lesivas para a saúde com fins recreativos e em que a noção do tabagismo se mantém como ato de afirmação de liberdade individual, provocaria inevitavelmente uma controvérsia que desviaria o foco de onde deve estar, que é na saúde pública. Por outro lado, esta medida nunca impediria que indivíduos mais velhos adquirissem tabaco e o fornecessem àqueles restringidos pela lei, para além da potencial promoção de um negócio ilegal paralelo.

O tabagismo é o maior fator de perca de anos e qualidade de vida humana nas sociedades ocidentais, sendo por isso obrigação dos trabalhadores de saúde e das autoridades um combate persistente contra o mesmo. Este combate deve necessariamente incluir a informação e a sensibilização nomeadamente nos grupos de maior risco, a disponibilização de programas de cessação tabágica, a defesa intransigente dos direitos dos não fumadores e a limitação da publicidade enganosa por parte dos fabricantes de tabaco e dispositivos de inalação de nicotina. Enquanto não conseguirmos estes objetivos, uma atitude proibicionista como a decretada pela Nova Zelândia, parecendo ir no caminho certo, poderia antes ser uma vertigem com consequências contrárias ao que todos desejamos, uma diminuição persistente e sustentada do hábito de fumar.

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